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Literatura brasileira

A periferia na literatura brasileira contemporânea

Na literatura da periferia, os temas são o proletariado, seus modos de vida e a luta de classes.

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Publicado em 2018, o livro de contos “Perifobia”, de Lilia Guerra, devido à excelência da escrita, talvez seja a melhor referência para introduzir as questões da literatura periférica na literatura brasileira contemporânea.

Valendo-se do título do livro, coloca-se a pergunta: quem tem medo da periferia? Já no título, a escritora insere-se conscientemente na chamada literatura periférica, quer dizer e em poucas palavras, a literatura escrita por quem vive fora dos bairros pequeno-burgueses, portanto, afastados dos centros urbanos. A periferia não é necessariamente a favela, a periferia também não se confunde com lugares específicos, trata-se, principalmente, do proletariado, da expressão de seus modos de vida e da luta de classes. Assim, se há um modo de escrever cuja origem é a favela e a pobreza extrema de quem está fora do mercado de trabalho, há outro, aquele do proletariado com acesso à escola, inclusive ao ensino universitário.

No primeiro caso, fazemos alusão à obra de Carolina de Jesus, em especial, “Quarto de despejo”, escrito por uma favelada, na favela, sobre a favela; a literatura periférica, contudo, é distinta disso, pois seus autores são operários, por isso mesmo seus horizontes e visibilidades são outros. A editora Global, por exemplo, lançou em 2007 a Coleção Periférica com três volumes e Alessandro Buzo, autor do romance “Guerreira”, um dos volumes da coleção, apresentou o programa SP Cultura, de 2011 a 2014, na 1ª edição do telejornal SPTv, Rede Globo.

As soluções literárias propostas pelos autores são muitas; embora as questões sociais estejam entre os principais encaminhamentos das narrativas, a literatura periférica, contrariamente ao esperado dela na cultura de massas, não pode ser reduzida a novelas burguesas nas quais a solução para a luta de classes é o casamento entre pobres e ricos. Vale a pena lembrar de, pelo menos, três outros autores além de Lilia Guerra, no caso três poetas, para confirmar a diversidade e a qualidade dessa literatura: Hélio Neri, Caco Pontes e Ricardo Escudeiro.

A respeito de “Perifobia”, entre tantas personagens fascinantes, chama-se atenção para Isabel, protagonista do conto “Entre roseiras e jabutis” e de outras histórias, e suas posturas diante da emancipação feminina, inclusive a sexual; destaca-se ainda o conto “Dia de graça” e a personagem Ganhaúma, outra figura além das expectativas burguesas capazes de não encontrar, naquele senhor de respeito, nada além de um vagabundo. Não se analisa aqui o conto pormenorizadamente, sequer se resume sua trama, salienta-se, todavia, a cena do almoço, tão delicioso e inesperado, servido ao Ganhaúma feito rei.

Alguns artistas se valem de reuniões espontâneas entre companheiros de vida, fazendo delas genuínas comunhões, movidas não apenas pela amizade e a luta, mas apontando para dimensões míticas e religiosas. No cinema, bons exemplos disso são alguns filmes de Ingmar Bergman: em “O sétimo selo”, há a confraternização entre o cavaleiro, seu escudeiro e a trupe de artistas, quando são servidos morangos e leite; em “Morangos silvestres”, quando o velho professor almoça com sua nora e três jovens desconhecidos. Pois bem, Lilia Guerra realiza comunhão semelhante com Ganhaúma, quem, inesperadamente, termina imerso naqueles momentos raros, servido no conto a café, cigarros, doses de cachaça, arroz, feijão, sardinhas e muito mais. Oferecidas por Dona Graça, a Gracinha, suas iguarias perfazem um rito cujo significado, nas palavras do samba “Sei lá Mangueira”, de Paulinho da Viola e Hermínio Belo de Carvalho, “para se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais”.

Retomando os três poetas supracitados, eis o poema “Praça Agenor Camilo Ramalho”, do livro “Sessões diárias e outros poemas”, 2018, de Hélio Neri:

uma tv na praça / sem qualquer utilidade / assiste a todos / que assistem / o desfecho final / de uma história / poderia ter sido deixada / ali enquanto ainda fosse útil / : cumprir seu papel / de descontrair nos tirar / da vida (real) / papel que aliás / sempre cumpriu / muito bem / agora sem uso / desmantelada / não teve sequer um / destino mais apropriado / (local adequado) e / ali abandonada / vulnerável a ação do tempo / sob sol chuva e o mato / que cresce à sua volta

De que modo a poesia surge nos versos de Hélio Neri? Tudo cabe na literatura; os poetas podem insistir na metalinguagem e explicitar a poesia dos próprios códigos em que ela se manifesta, enquanto outros preferem a fruição das palavras, construindo seus temas por meio da declamação quase musical dos versos, muitas vezes improvisados; há os poetas das formas fixas, compondo sonetos, haikai, madrigais, entre tantas delas, e há os poetas que fazem versos conversando conosco. O Hélio é poeta conversador; ler seus poemas é escutar sua voz aguda, tranquila, amistosa, firme, voz de companheiro de luta, digno de confiança.

Provavelmente, tal impressão de firmeza vem da sinceridade com que o Hélio fala do mundo e da realidade miserável descrita por ele, facilmente vulgarizada na escrita dos demagogos. Ele não se exalta, não descamba a vociferar contra o sistema, apenas descreve a mazela humana gerada pelo capitalismo sem subterfúgios; suas denúncias, antes de comoverem, trazem a consciência política expondo os motivos das revoluções. Tematizar o mundo, contudo, não é simplesmente falar das coisas cotidianas, pois se trata de fazer recortes dessa realidade, construindo-a por meio das escolhas realizadas; alimentados por sua voz, os recortes de Hélio Neri incidem contundentemente nas mazelas sociais não por elas serem raras e ocasionais, mas por serem regra frequente. 

Afinal, o que faria de sua arte poesia além da denúncia social, da entonação de poeta e da sinceridade? Talvez os modos de se ver a beleza em uma poesia cujo um dos temas principais é a desumanização seja, paradoxalmente, a humanização do poeta e, por decorrência, de todos aqueles que, tão imersos na peste emocional do capitalismo quanto ele, dela se curam para combatê-la. 

Tanto Lilia Guerra quanto Hélio Neri tematizam o cotidiano da periferia, seja com personagens, seja nos tempos e espaços da literatura; todavia, há poetas, embora escritores da periferia, cujos versos cuidam de outros temas, entre tais artistas, Caco Pontes merece ser mencionado. Em sua poesia, Caco aproxima-se da chamada etnopoesia, feita nos Estados Unidos, por exemplo, por Michael McClure, voltada para a natureza por meio de práticas religiosas animistas, xamânicas, entre as quais são utilizadas drogas alucinógenas em busca de transcendência.  

Na periferia há tráfico de drogas, cujos efeitos, comumente disfóricos, ganham novos sentidos na arte de Caco Pontes, pois em seus versos, as drogas apontam para a expansão da mente mediante estados alterados de consciência, seja a maconha no poema “Luzêra”, de seu primeiro livro “O incrível acordo entre o silêncio e o alter ego”, 2008, sejam drogas alucinógenas do “poema XIII”, de “A ordem dos fatores ocultos”, 2019. Essa não é a única temática de Caco Pontes, ele se refere frequentemente às aventuras e desventuras dos moradores da cidade de São Paulo, inclusive às próprias, entretanto, as drogas, além de estarem sempre presentes em seus livros, ocupam quase totalmente o livro de 2019. Eis os poemas:

“Luzêra”:

              Flô de jardim / tesa certeza / clareia, ilumina, refaça / disfarce / mato, capim / enquanto houver estoque / espoleta, estopim / se for retrato ingrato / (e não há de ser) / nem mesmo perecer / FIM. // Re-começo / mesmo endereço e sentido / Tal achado estimado / valor nobre e bem correspondido / permanece em deserto o cacto / se achando enquanto encontra-se perdido.

“poema XIII”:

o voo da águia / rasgou espirais no céu / rompeu buracos no firmamento / em anunciação / toda nuvem que encobria / a clareza / foi soprada / para que se encontrasse / nesta manifestação / o seu animal de poder / superando o tabu / e chegando ao estado / totêmico

Outro poeta mencionado é o Ricardo Escudeiro, até o momento, autor dos livros “Tempo espaço retratos” / 2014, “Rachar átomo e depois” / 2016 e “A implantação de um trauma e seu sucesso” / 2019, quem, em seus dados biográficos, não se esquece das profissões de metalúrgico e professor, exercidas anteriormente aos atuais ofícios de poeta, editor e agitador cultural. Antes de quaisquer citações de seus poemas, porém, cabem algumas palavras sobre sua postura poética, o que não deixa de ser, a seu modo, menções a sua poesia.

O Ricardo Escudeiro é formado em Letras e dá continuidade a seus estudos no curso de pós-graduação, nível de mestrado, em criação literária na área de Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP; em seu trabalho, ele discute os temas associados, via-de-regra, à literatura periférica, contrapondo-se ao esperado dela seja por leitores pequeno burgueses, sempre dispostos a não ver na periferia nada além de miséria e violência, seja pela crítica identitária pautada por conceitos ingênuos ou confusos de classe social, etnia, gênero.

Nos poemas de “A implantação de um trauma e seu sucesso”, há menções ao Hyoga, personagem do anime “Cavaleiros do Zodíaco”, o cavaleiro da constelação de Cisne. As artes marciais são tematizadas com frequência na poesia do Escudeiro; socos, chutes e jabs são comuns nos livros anteriores, todavia, o que chama atenção na referência ao cavaleiro de Cisne não são as alusões às artes marciais, mas a personagem por meio do qual ela é feita.

O Ricardo é negro e morador de periferia, em sua poesia, no entanto, coerentemente com seu projeto de pós-graduação, ele dá novos sentidos aos temas das literaturas negra e periférica. Segundo o Escudeiro, refletem-se na literatura da periferia alguns tópicos com os quais é possível caracterizá-la seja pelos estilos literários, seja expressão das lutas sociais do proletariado. Entretanto, quando ela se torna outro produto da cultura de massas via editoras comerciais, insinuam-se, dessa vez insidiosamente, valores burgueses, por meio dos quais se projetam nas culturas de periferia os costumeiros preconceitos de miséria intelectual, isto é, de falta de cultura própria dessas comunidades, de bandidagem para as personagens masculinas, de prostituição, para as femininas. O já citado romance “Guerreira”, de Alessandro Buzo, padece desses preconceitos; isso se verifica facilmente nos protagonistas da trama, um bandido e uma prostituta. O Ricardo Escudeiro, contrariamente, faz uma poesia dificilmente identificada com essa literatura periférica repleta de lugares comuns – cabe lembrar, projetados pela pequena burguesia –, porque vai de encontro àqueles temas insidiosos, nos quais se intenta transformar os cidadãos periférico em ladrões, traficantes, sequestradores e prostitutas; a burguesia parece projetar seus próprios valores de bandidagem e prostituição em outras classes sociais, imaginando que todos se comportariam à sua maneira.

Evidentemente, essa poesia não se resume aos registros de personagens de desenhos animados vespertinos supostamente pensados para entreter crianças, a propósito dos quais há muitos preconceitos, em razão dessas animações discutirem classes sociais, sexualidade, amizade e companheirismo mais profundamente do que em novelas e seriados burgueses com seus eternos dramalhões sem luta de classes. A poesia do Ricardo, por fim, vai além das lembranças de animes e mangás, tampouco sua luta não é aquela disseminada em academias pequeno burguesas, trata-se, isto sim, de aprender a lutar para se defender dos avanços fascistas e da repressão do aparato policial, quer dizer, a luta expressa na poesia de alguém com as vivências de metalúrgico, professor e estudante, acostumado a enfrentar as costumeiras pancadarias na hora de fazer valer quaisquer reivindicações, entre elas, as reivindicações da poesia.

Por fim, um poema seu sobre luta, “Eye of the tiger”, e outro, “Dar uns tiros”, sobre as adversidades do trabalhador exaurido devido à exploração de sua força de trabalho e as tendências a se drogar não para festejar, mas para conseguir terminar o turno, uma vez que “pó” e “tiro” se referem ao consumo de cocaína, uma droga estimulante.

“Eye of the tiger”:

“float like a butterfly, sing like a bee”

(Muhammad ali)

sobre abelhas e borboletas // jab direto / jab direto // nada // jab jab sai / suave pra esquerda // fatal // o soco e o outro / vez ou outra abdicar da esquiva / ir de encontro / só / quebra o que é dente / só / jorra o que é sangue / só / dói o que o corpo 

“Dar uns tiros”: 

mira o relógio pra ter em mente / feito um viciado / inconsciente / a quantas vai o extinguir / do pó do sempre / e entre um cigarro e o ponteiro / maquinal / pra si / mente / a fumaça intragável do tempo / indizível / só mais um tiro de rotina 

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