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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

A literatura negra e a poesia erótica de Anamaria Alves

Mulher, negra e sem medo dos moralistas

              Por conhecer vários escritores pessoalmente e afeiçoar-me a eles e suas literaturas, sou convidado para escrever prefácios, orelhas e contracapas de livros de prosa ou poesia, trabalho feito com satisfação; uma vez escrito, meus comentários acompanham o livro, chegando a vários leitores, entre eles, outros escritores, que terminam entrando em contato comigo e tornando-se queridos companheiros de literatura. Quando escrevi o prefácio do livro de poesia “Também estivemos em Pompeia”, da Simone Teodoro, 2019, tive a felicidade de receber mensagens de outra escritora, a Anamaria Alves, amiga da Simone, e de conhecer seus contos e poemas.

              A Anamaria vive complexificação singular enquanto escritora, sendo, na mesma pessoa, militante da literatura negra, reflexo de seu presente e passado quilombolas, e entusiasta da literatura erótica, em particular, da literatura sadomasoquista, seguindo os passos de Wilma Azevedo e Glauco Mattoso, havendo nosso contato se dado, justamente, por meio da literatura erótica. A Simone Teodoro, pelos menos em seus dois primeiros livros, faz explicitamente poesia de temática lésbica – já publiquei poemas seus em edições anteriores do DCO –; tal temática, além do sexo, envolve comportamento, vestuário, adereços, vocabulário específico e variados dramas sociais e políticos contemplados predominantemente na poesia da Simone, na qual, raramente, são tematizadas relações sexuais, desejos ou fantasias eróticas. Com Anamaria, entretanto, quando se trata de tematizar sadomasoquismo, a fantasia e sua práxis expressam-se livremente.

              No prefácio do livro da Simone Teodoro, relaciono a temática lésbica a outras temáticas sexuais, tais quais gays, travestis e transexuais, todas elas baseadas nos sujeitos sociais, mas também insisto nos ritos eróticos nos quais tais sujeitos terminam necessariamente envolvidos, da tradicional posição de missionário a encenações grupais sofisticadas, envolvendo trajes e objetos específicos. Dessa maneira, por buscar pela sexualidade além das siglas LGBT ou BDSM, chamei sua atenção e a Anamaria resolveu me escrever, apresentando-se para falar de língua e literatura.

              Primeiramente, ela me disse ser professora, isto é, uma trabalhadora; Anamaria domina quatro idiomas além do português, falando inglês, alemão, espanhol e francês, estudando atualmente russo e mandarim. Depois das línguas, conversamos sobre literatura, quando me mostrou suas publicações em revistas de literatura negra, tais quais o site da Literafro, da Universidade Federal de Minas Gerais, ou os célebres Cadernos Negros, do coletivo Kilombhoje, em que publicaram nomes importantes do movimento negro, por exemplo, Paulo Colina, Oswaldo de Camargo e Cuti.

              Nessa temática, eis o poema da Vó Maria, inspirado nas lembranças da Vó Maria da Ponte Queimada:

              Da casinha pequenininha / Que chovia mais dentro que fora / saía arrastando os chinelos / vestida de chita a velhinha. / Lenço sujo à cabeça / ou o marido zangava. / Lá ia Bisa Maria / benzer as vacas do sô Antônio! / Viviam as bichinhas / Morriam as bicheiras / E o fazendeiro contente / mandava chamar a benzedeira! / – Vai correndo depressa, menino! / O moleque resfolegante e risonho / mostrava na boca semi-vazia / apenas um único dente. / E sorrindo avisava: / Dô Maria, sô Antoin mandou eu módi avisá qui tem cabeça lá, / e a sinhóra tem qui buscá! / Ia ela arrastando seus chinelos. / E voltava com uma cabeça… / – Ispia lá qui a vó invém! / – Óia os chifre da vaca que tamanhão, vem ver, Lalá! / E por alguns dias naquela casinha, / havia carne para comer com angú. / Carne de cabeça de vaca. / Fubá de moinho d’água. / Mataram muita fome nesse Belo Vale… / de lágrimas!

              No poema é tematizada a realidade vivida por populações rurais, especificamente, o Quilombo Chacrinha dos Pretos, no estado de Minas Gerais, afastadas dos centros urbanos, contudo, socialmente fundadas em princípios semelhantes, isto é, na luta de classes, não entre a burguesia e o proletariado, enfrentada por Anamaria no seu cotidiano de professora do ensino privado, ou seja, de operária explorada pela pequena burguesia, mas nos conflitos entre camponeses e proprietários da terra. Nos versos, as lembranças da avó de Anamaria, passadas para neta em forma de literatura oral, tornam-se poesia contemporânea; no poema, expressa-se a contradição entre a benzedeira, capaz de curar as doenças do gado, sendo responsável pela saúde e a vida dos animais, receber em troca do trabalho apenas restos de carne para comer, sobras que sequer seriam os miúdos, mas somente a cabeça da vaca, cuja pouca carne se reduz a miolos.

                   A poesia da Anamaria, entretanto, não se restringe apenas aos temas da literatura negra, ela também milita na poesia erótica participando de uma minoria bastante singular, no caso, a modalidade brat do sadomasoquismo. Eis os versos do “poema de um hotel de luxo qualquer numa quarta-feira à tarde”:

              A máscara que cobre o rosto / enquanto as cordas adornam a cintura e os seios e as pernas e os braços e o pescoço // O couro do chicote beija e lambe a bunda nua e as marcas vermelhas e vermelhas e o rosto vermelho e vermelho e as lágrimas escorrem dos olhos por baixo da máscara negra e negra // Os gritos e as marcas e o chicote e as cordas e a bunda nua vermelha e vermelha e o mel que escorre da buceta brilhando e melando as pernas e os gritos e os gritos… / Não / são / de / dor.

              O sadomasoquismo, feito qualquer paixão erótica, não se manifesta homogeneamente; embora seus fundamentos sejam a liberdade, a opressão, a dor e o prazer, há numerosas formas desses valores serem revestidos pelos sujeitos eróticos em ritos específicos. Dessa maneira, há quem prefira roupas de couro, algemas e chicotes; há quem se entusiasme com técnicas de amarração; outros se realizam fazendo papeis de submissos diante das palmadas dos parceiros e parceiras… entre tantas vertentes, Anamaria insere-se enquanto “brat”. Em inglês, “brat” significa “pirralho”; nos termos do sadomasoquismo, os brats, em linhas gerais, oscilam entre a submissão e a rebeldia, não sendo o submisso clássico, sempre às ordens, mas complexificando a relação dominador-dominado mediante a desobediência. Nos versos do poema, a excitação metaforizada pelo mel e a negação da dor expressam a atividade no seio do papel passivo encenado inicialmente, pois nas primeiras estrofes está tematizado o BDSM com as figuras tradicionais do mestre e do submisso, com as cordas servindo de adorno segundo a arte da amarração, isto é, bondage ou shibari, e a utilização erótica do chicote, que não agride, mas beija.

              O que chama atenção, no entanto, é a significação dada ao chicote na poesia de uma escritora engajada com o movimento negro, portanto, com o combate a opressão e discriminação raciais, cujo chicote é um símbolo; e por ser mulher, soma-se, à luta pela igualdade sexual, ter coragem para se expor nas duas militâncias de mulher negra e sadomasoquista, disposta a contradizer, ao mesmo tempo, racistas e puritanos.

              Atualmente, além do ofício de escritora e da profissão de professora de línguas estrangeiras, Anamaria Alves é voluntária ensinando online alemão e francês para estudantes africanos. Por fim, deixo para os caros leitores um belíssimo conto de sua autoria:

              “Vô Torgamin”

              Deixa eu contar do meu avô. Dizem que a gente herda as coisas. Hoje ensinando idiomas para as crianças no Quênia, na África, eu vejo que estamos mesmo atrelados de alguma maneira. Vejo que o povo africano é dos mais inteligentes do planeta e de como dói ver negadas a essas pessoas sobrevivência e humanidade. Eu sinto a dor do esmagamento sistemático dessas crianças pequenas. Muto o microfone, desligo a câmera e choro um pouco. Volto. Meus pequenos africanos me lembram tanta coisa! Eles me lembram de mim. É como apontar um espelho para o passado e a luz que bate me traz no espelho o reflexo do meu avô Quilombola. Ele nasceu em 1920, 32 anos após a “abolição da escravidão”. E ele lutou. Todos no Quilombo Chácara dos Pretos lutaram. Vô Torgamin e vô Geraldo lutaram, mas de um jeito diferente. Lembro de escrever o “Laroyê, Vô” em homenagem ao vô Geraldo. Mais lágrimas escorrem, vou ao banheiro do meu quarto e lavo o rosto já vermelho de chorar.

              Vovô Otorgamin trabalhou na ferrovia por anos a fio. Um dia, ele caiu embaixo do trem em movimento, a roda vinha em direção a seu pescoço para arrancar-lhe a cabeça. Mais um negro morto. Mais uma vida ceifada por todo o peso do ferro que nos esmaga desde os cascos dos negreiros. Naquele momento, quando a vida passou diante de seus belos olhos cor de noite sem lua, ele ouviu uma voz macia: “Apesar do volume do sangue e da água ser o mesmo, a densidade do sangue é maior que a da água. Por definição, a densidade de um corpo é o quociente de sua massa pelo volume delimitado pela sua superfície externa. Você está ouvindo o Projeto Minerva, na sua rádio …..”

              Em um momento de lucidez que durou a exata fração de um segundo, ele retirou a cabeça do trilho, mas o trem não ficaria sem moer ao menos um membro do corpo negro de meu avô. Quando a roda passou por cima de sua perna e a esmagou, o sangue jorrou de um jeito que todos acharam que ele estaria morto. O maquinista não parou o trem. O maquinista era uma espécie de ceifador todo poderoso que, trazendo consigo a tecnologia, espalharia morte e destruição pelos vilarejos. Meu avô não chorou. Não demonstrou ter sentido dor. Quando finalmente pararam o trem para retirar o cadáver, ele estava vivo e não havia sequer desmaiado. Minha avó às vezes nos contava essa história. Foram dias internado em um hospital e o homem que costumava correr livre em cima dos vagões de trem saiu preso a uma cadeira de rodas. Vida que esmaga. Mas como dizem os jovens de hoje, vida que segue. Foi assim que eu o conheci, sentado na cadeira de rodas. Meu avô parecia um Rei. Ele viu a cara viva da morte e viu sua perna esmagada em carne viva e nervos e viu seu sangue jorrar mais denso que a água e apesar da luz que sempre o iluminou ter quase cegado os seus olhos, vô Torgamin sobreviveu para ver os netos. Meu avô parecia um Rei. Muitos anos antes, meu avô pisou no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro ao lado de Abdias Nascimento para encenar uma peça de Teatro. E depois ele se casou, teve sete filhas e um filho, criou todos. Ele ouvia todos os dias na rádio o projeto Minerva, programa educativo, na busca de adquirir cultura. Meu avô parecia um Rei. E depois, por causa de sua caligrafia e criatividade, passou a escrever discursos para políticos de Minas Gerais.

              “Belo Horizonte, 20 de maio de 1960, ano de nosso Senhor Jesus Cristo. Saúdo a todos os amigos de jornada e futuros eleitores. Exponho nessas linhas bem traçadas meus planos…”

              Só existia papel almaço naquela época. Senhor Otorgamin escreveu certo por linhas que ele mesmo traçou. Meu avô parecia um Rei.

              E depois de morrer, batizaram a ponte com seu nome: Ponte Otorgamin Francisco Dias.

              Meu avô era um Rei.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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