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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

O experimentalismo na literatura brasileira contemporânea

Na poesia experimental as reflexões sociais realizam-se em paralelo com as reflexões linguísticas.

Literatura experimental

Na música, as notas musicais não vibram naturalmente, prontas para serem colhidas pelos compositores movidos pela inspiração; em verdade, essas mesmas notas são, antes de tudo, determinadas em sistemas musicais. Consequentemente, em termos formais, os sistemas musicais antecedem e justificam a música, gerando não apenas as diretrizes da composição, mas as próprias notas musicais e os demais elementos utilizados nessa linguagem. A nota dó, por exemplo, define-se em relação às demais notas na divisão, em grande parte arbitrária, da escala contínua de frequências sonoras, a qual poderia ser segmentada de outros modos, gerando-se consequentemente outras notas além ou aquém das doze notas da escala utilizada na música ocidental.

Esse fenômeno não é exclusivo da música, ele se aplica às demais linguagens, entre elas, a literatura, não em termos das categorias musicais, evidentemente, mas em termos fonológicos, prosódicos, semânticos, quer dizer, nos termos dos códigos linguísticos. Assim, por serem constitutivas de todas as linguagens, as regras do código podem ser problematizadas poeticamente, passando de constituintes a temas da literatura; quando isso acontece entre as vanguardas do início do século XX, costuma-se chamar arte experimental. Contudo, independentemente da época, não são raros procedimentos do experimentalismo na história da arte; os poetas experimentais contemporâneos sempre cuidaram da exploração do passado em busca de antecedentes; talvez o caso mais significativo sejam as pesquisas da poeta portuguesa experimental Ana Hatherly sobre o barroco ibérico, constatando nos séculos XV, XVI e XVII a presença marcante do que, no século XX, é chamado poesia visual, poesia sonora, poesia por análise combinatória, poema objeto etc.

O que significa, todavia, fazer poesia com as regras do código? Todos os poetas fazem poesia seguindo os códigos da linguagem verbal; isso parece evidente pois, uma vez fora da linguagem verbal, isto é, fora dos processos prosódico-fonológicos e semânticos, a poesia passa a ser feita com outras linguagens. Assim, o poeta tematiza quaisquer assuntos, podendo, inclusive, explicitar tais processos linguísticos, fazendo, portanto, poesia com a regras do código.

Aproximando-se do marxismo, o neorrealismo e o surrealismo, cada qual a seu modo, dialogam, por meio da poesia, com as políticas de esquerda contemporâneas, assumindo em diferentes graus as causas do proletariado e da esquerda pequeno-burguesa, cabendo indagar, portanto, se há tais diálogos realizados pelo experimentalismo. Para desenvolver esse tópico, vale a pena citar dois poetas brasileiros contemporâneos experimentais; para tanto, anexo ao texto o poema sonoro “O sertanista”, do livro “O pênis do Espírito Santo”, 2018, de Djami Sezostre, e um poema visual de Gil Jorge colhido na internet:

A cal!sgrafia a exxtranha
Cães ligrafia de meu pai que nascia e visvia
E naonascia e naovisvia o meu pai e seu
L’pis do camminnhar atravês vés a
Caligrafia aestranharme aentrarrharme
Caligrafiafira de um sertanista um dia
Um sertanista e ele o meu pai
Aiodfadsfdsajhfjsdafsdafsdafusdfsda
E não quero mais escrever xxzxx
Uma vaca é uma vaca é uma vaca
E uma rosa então é uma rosa então é uma rosa
Mas a vaca não é uma vaca e a rosa não é uma rosa
Afinal, quem vai entender o que é para entender,
Emtemda, extrume, excrementos

A mão extramha a fala extramha o falo extramho”

Nos dois poemas os temas sociais, caros aos objetivos do neorrealismo, estão presentes. Na literatura brasileira as relações entre o homem e o ambiente sertanejo são tematizadas recorrentemente; autores ao longo de sua história e envolvidos em causas bastante distintas, tais quais José de Alencar, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, na prosa, ou Patativa do Assaré e João Cabral de Melo Neto, na poesia, recorreram, em tramas e versos, ao sertanejo e seus costumes. Sem dúvida, o poema sonoro de Sezostre se insere nessas vertentes, entretanto, a elaboração fonológica, desencadeando novos sentidos, acrescenta ao tema do sertão reflexões linguísticas.

Já a poesia de Gil Jorge se aproxima do neorrealismo ao tematizar o mal-estar na civilização regida pelo capital, fazendo o pedido de socorro SOS surgir sob os versos “mudo de medo / todo(s os) dias”; contudo, semelhantemente ao poema sonoro de Sezostre, a elaboração linguística enfatiza essa significação quando o SOS se manifesta escondido no medo gerado pela repressão. Em ambos os poemas, seja por meio de poesia sonora, seja poesia visual, as reflexões sociais foram realizadas em paralelo com reflexões linguísticas, cujos sentidos foram obtidos pela segmentação da linguagem em seus constituintes formais segundo a engenharia do poeta; tanto Djami Sezostre quanto Gil Jorge convocam as articulações fonológicas e morfológicas nos poemas citados a participarem explicitamente da poesia.

Por fim, uma última observação sobre os diálogos entre o experimentalismo e as políticas de sua época. O estruturalismo, enquanto ponto de vista supostamente científico, opõem-se ao marxismo; isso não pode ser discutido ligeiramente, entretanto, uma breve consulta às considerações de Claude Lévi-Strauss ou Algirdas Julien Greimas a respeito das relações entre as ciências humanas e política traz à luz as opiniões pouco progressistas, para não dizer reacionárias, do antropólogo e do semioticista.

Eis duas citações, ambas extraídas da “História do estruturalismo”, de François Dosse. Na primeira, Lévi-Strauss comenta evasivamente os papéis políticos do intelectual engajado: (1) “Não, eu considero que minha autoridade intelectual, na medida em que se me reconheça possuir alguma, repousa na soma de trabalho, nos escrúpulos de rigor e de exatidão”. Na segunda citação, Greimas expressa suas ideias a respeito de Ferdinand de Saussure e Karl Marx, buscando eclipsar o pensamento político comunista em detrimento das reflexões linguísticas sobre os conceitos de sistema e estrutura: (2) “O tiro de largada foi a aula inaugural de Merleau-Ponty no Collège de France (1952), quando ele disse que se verá claramente não ter sido Marx, mas Saussure quem inventou a filosofia da história. É um paradoxo que me fez refletir sobre o fato de que antes de fazer a história dos eventos seria necessário fazer a história dos sistemas de pensamento, dos sistemas econômicos, e somente então procurar saber como eles evoluem”.

Os artistas experimentais frequentemente recorrem às teorias da linguagem, da semiologia e da semiótica para justificar suas obras: Ana Hatherly refere-se a Saussure na composição de sua “Anagramática”; Roman Jacobson, Roland Barthes, Umberto Eco e outros semiólogos são frequentemente citados por poetas visuais. Por consequência, haveria relações entre o experimentalismo e a direita? Embora aconteça, vale lembrar dos futuristas italianos entusiasmados com o fascismo, isso não ocorre necessariamente, conquanto não sejam raros os entreveros dos artistas engajados com os artistas experimentais, em que os últimos são acusados, na maioria das vezes injustamente, de alienação política.

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*As opiniões dos colunistas não expressam, necessariamente, as deste Diário.

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