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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Quadrinhos brasileiros

Histórias de Samurai

Os samurais dos brasileiros e os brasileiros samurais

Samurais

Para quem gosta dos samurais, quero sugerir duas histórias em quadrinhos lançadas em 2018: (1) “Os cinco vermelhos”, da Talessa Kuguimiya; (2) “Zé Murai – malassombros na terra do sol”, uma criação de Ricardo Sousa e Tiago Oaks. Por que essas duas? Porque além da qualidade dos desenhos e da engenhosidade das tramas, elas permitem refletir sobre alguns traços da presença japonesa na cultura brasileira.

Nasci em 1964, lembro-me de alguns desenhos ou seriados de televisão certamente marcantes para outras pessoas da minha geração: “Vingadores do Espaço”, “Super Dínamo”, “A Princesa e o Cavaleiro”. O primeiro é um seriado de televisão em que são narradas as aventuras de Goldar, um robô gigante em sua luta contra monstros gigantes, estreado no Brasil em 1973. Os outros dois são desenhos animados surgidos no Brasil em meados da década de 70: Super Dínamo é um menino super-herói; a princesa é a princesa Safiri, quem se veste de menino para poder governar o Reino de Prata. O Goldar e a princesa Safiri são criações do grande mestre Osamu Tezuka; Super Dínamo é criação de Hiroshi Fujimoto e Motoo Abiko. Na época, porém, não me dava conta de serem produções japonesas e nem do valor artístico merecidamente atribuído a elas.

Quando se pensa nos fundamentos da cultura brasileira, sempre são evocados índios, negros e portugueses. Essa antropologia é imprecisa, pois as muitas comunidades indígenas brasileiras, com suas mais de 200 línguas, não podem ser reduzidas a uma população homogênea; o mesmo se dá com os negros brasileiros, descendentes de culturas africanas originalmente distintas – a Revolta dos Malês, 1835, por exemplo, foi levada adiante por muçulmanos –; além dos portugueses, o Brasil também foi colonizado por espanhóis, judeus, árabes, italianos, coreanos, chineses, japoneses etc. Sobre a cultura japonesa, das muitas relações estabelecidas entre tantos povos, quero destacar duas: (1) brasileiros valendo-se de suas tradições de origem, esse é o caso da brasileira Talessa K. em sua história de samurais; (2) brasileiros citando a cultura japonesa em meio a narrativas tipicamente brasileiras, tal como o Zé Murai, um cangaceiro armado com uma katana em vez de peixeira.

Em “Cinco vermelhos”, da Talessa K., são narradas as aventuras da única sobrevivente de uma matança buscando vingar dos pais; outra menina vestindo-se de menino para atingir seus objetivos, semelhantemente a outras mulheres: (1) A princesa Safiri, da animação de Tezuka; (2) Silvestre, a personagem medieval vivida por Maria da Medeiros no filme de João César Monteiro; (3) Diadorim, do “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa; as duas últimas personagens, igualmente à guerreira da obra de Talessa, vestem-se de homem para vingar a morte do pai. Não vou me perder analisando a HQ, quero apenas chamar a atenção para um detalhe significativo: os cinco vermelhos são os cinco capítulos da história, mas também podem ser os cinco haikai introdutores de cada capítulo.

Ao lado dos mangás e animes, o haikai é uma arte japonesa bastante divulgada no Brasil. Para quem conhece um pouco de literatura japonesa, sabe que os haikai são versos de 17 sílabas, com variadas regras de composição, entre elas: citar as estações do ano, cada uma delas expressa por símbolos convencionais; valer-se de marcadores linguísticos para encaminhar as interpretações do texto; na poesia brasileira, vale a pena mencionar Guilherme de Almeida, quem deu forma poética ao haikai em língua portuguesa e Pedro Xisto, quem levou as propostas de Almeida às poéticas experimentais. Por tudo isso, os haikai estão longe de ser apenas poemas breves, de três versos, com vaga inspiração esotérica…

Em sua HQ, a Talessa escolhe cinco poetas japoneses – Hashin, Bashô, Sogetsu-Ni, Buson e Shiki – célebres por seus haikai; cada haikai encaminha a narrativa do capítulo introduzido, fazendo da HQ o desdobramento dos poemas. Dos haikai e samurais japoneses vamos para literatura de cordel e uma de suas personagens mais populares, o cangaceiro.

Embora frutos do banditismo social, os cangaceiros não foram necessariamente revolucionários; Lampião, vale lembrar, atacou a Coluna Prestes em 1926. No Cinema Novo brasileiro, porém, devido ao imaginário de Glauber Rocha, os cangaceiros, por combaterem nos filmes os latifundiários, aproximam-se dos guerrilheiros de esquerda; por travar combates semelhantes, o cangaceiro Zé Murai lembra do cangaceiro Coirana, personagem de “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”, filme de Glauber, 1969. O Zé, entretanto, não porta peixeira, mas uma katana, por isso mesmo ele é o Zé Murai; seus inimigos são seres sobrenaturais, entre eles, o demônio disfarçado de coronel, onças e a própria Morte disfarçadas de mocinhas inocentes, enfim, temas presentes na literatura de cordel e nos contos populares do nordeste brasileiro, terra de Lampião, Corisco… de Antonio das Mortes e agora também de cangaceiros samurais.       

A HQ “Zé Murai – malassombros na Terra do Sol” é uma coletânea de histórias da personagem; ao todo, são cinco aventuras do Zé: “Encontros macabros”, de Tiago Oaks e Ricardo Sousa – os criadores do Zé Murai –; “Papangu”, de Kung Fu e Panda; “Girassol”, de Larissa Palmieri e Pedro Okuyama; “Cão das bila”, de Samuel Bono; “Dados marcados”, do Al Stefano.

E assim, entre haikai e cordéis, a cultura brasileira segue adiante… 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

 

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