Temos falado muito sobre o imperialismo neste momento de Copa do Mundo do Catar, devido ao ataque sem trégua que a mídia dos países europeus e dos Estados Unidos, e por tabela do jornalismo brasileiro subserviente, tem feito ao país e às suas culturas.
A inspiração para este texto vem um pouco deste cenário. Visa fazer uma análise sobre um filme de 1999 que tem a Copa do Mundo como parte de seu enredo. Estávamos em um outro momento histórico, em plena era neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, cavando o poço que nos traria até aqui.
Foi neste ano que, pela primeira vez em sua história, o Butão, um pequeno país agrícola, de regime monárquico parlamentarista, com apenas um milhão de habitantes, encravado entre a Índia, a China e o Himalaia, produziu seu primeiro filme. E este filme tem como enredo a final da Copa do Mundo da França, quando o Brasil perdeu para o país anfitrião. Trata-se de A Copa (Phörpa, 1999).
A história, baseada em fatos reais, foi rodada no Monastério de Chokling. Ali, rapazes de diferentes idades vivem uma rotina de estudos e trabalho para se tornarem monges budistas. Um personagem se destaca, o adolescente Orgyen (Jamyang Lodro). Rebelde e inteligente, ele faz de tudo para assistir aos jogos e é através de suas peripécias que conhecemos mais sobre o lugar e seus habitantes.
Quando a final chega, é dele a ideia de alugar uma TV para que todos assistam a partida. Ele consegue permissão, mas o dinheiro é pouco e ele precisa não só conseguir toda a quantia, como também instalar o aparelho e torcer para que funcione. Fã incondicional de Ronaldinho, na época o craque da seleção brasileira, ele diz apontando uma foto do atacante pregada à parede de seu quarto: “ele raspa o cabelo como nós, mas não é monge”.
O filme foi dirigido pelo também monge Khyentse Norbu e ganhou várias indicações e prêmios internacionais na época, levando o nome do Butão ao universo dos festivais cinematográficos. De lá para cá, Norbu dirigiu mais cinco filmes, o último em 2021.
A Copa tem uma narrativa leve e lembra enredos de peripécias juvenis que conhecemos. (Cito aqui o maravilhoso Kes, de Ken Loach, de 1968, onde o futebol também tem seu lugar em uma comunidade de trabalhadores ingleses). O filme do Butão tem uma importância histórica fundamental ao representar o ponto de vista de pessoas muito isoladas diante do capitalismo e como lidam com ele em seu cotidiano.
Não por acaso, a cena inicial começa com um pequeno jogo de bola entre os jovens monges no pátio do mosteiro. No lugar da bola, eles chutam aleatoriamente uma lata amassada de coca-cola. Quando o mestre aparece, eles deixam rapidamente a brincadeira para voltar à disciplina.
Este, por sua vez, não joga fora a latinha. Ele a entrega a um outro sacerdote mais velho, que a usa como suporte de velas. A trajetória desta latinha de coca-cola é o primeiro indício de que, por trás da docilidade e dos pequenos dramas do monastério, o capitalismo está ali, os rondando e este é o tema do filme.
Ele aparece na ausência de facilidades modernas, como a TV. Os recursos são claramente escassos não só pela escolha de uma vida ascética, mas pelas limitações financeiras impostas pela conjuntura. O mosteiro é lar para muitos meninos pobres, cujos pais, não podendo sustentá-los e os encaminham para a vida monástica como forma de garantir um futuro melhor.
Em vários momentos, há uma sensação de que estamos assistindo a um documentário sobre aqueles personagens. Conhecemos as rezas e mantras, os aposentos, a cozinha, o chá com manteiga, como tomam banho, suas rotinas de estudos e de trabalho.
A admiração pelo futebol e pela seleção brasileira mostra o alcance de símbolos. Há uma crítica à China, porém a maior é contra os Estados Unidos. Em um dado momento, um personagem diz, profético: “A China é o maior pavor dos Estados Unidos”.
Esta é a experiência cinematográfica de assistir a A Copa. O filme parece devolver nossa cultura pelos olhos dos pequenos monges, algo que é sempre marcante. Mais, ele torna a discussão sobre o imperialismo em tempos de Copa do Mundo bem atual.