Dia desses, um maestro que responde a dúvidas de ouvintes sobre música clássica na Rádio Cultura recebeu de um deles uma pergunta curiosa. A pessoa queria saber se ouvir música clássica é “saudável”. O maestro explicou que os grandes compositores nada têm que ver com a saúde de ninguém e que os ouve quem deles gosta. Aproveitou para desmentir umas bobagens que andam circulando por aí sobre a música de Mozart ter um suposto efeito terapêutico e, pacientemente, acrescentou que o compositor fez músicas em si muito distintas, sendo difícil até mesmo dizer o que seria “a música de Mozart”.
Fato é que existe um pessoal, geralmente afinado no diapasão da esquerda pompom, que vive preocupado em fazer cada qual a sua parte para tornar o mundo um lugar mais “saudável”. São obcecados pela saúde: não ingerem açúcar, não comem depois das 18 horas, fazem exercícios regularmente, usam sacola descartável no supermercado, escolhem as palavras certas para não incorrer em homofobia, transfobia, gordofobia, aporofobia, racismo, capacitismo e o que mais vier. São ecologistas por natureza e, por isso mesmo, só consomem vegetais orgânicos, cervejas artesanais, sal rosa do Himalaia, suco verde e outros artigos do bem. Como declarou uma pessoa que fez pingar um superchat no 247, ser vegano é “uma questão de caráter”.
Vejamos como a coisa toda é curiosa. Ser “saudável”, de modo geral, é o que essas pessoas entendem por “ter caráter”. E “ter caráter” é sua ação política. É algo como “torne-se vegano e você, além de poupar os animais, acabará com o agronegócio”. Não vamos “discutir” ideias, vamos “debater” ideias. “Debater” é mais saudável que “discutir”. De onde tiraram isso? Ah, “discussão” parece briga de casal, coisa “tóxica”. Essa confusão entre saúde, caráter e ação política pautada em gestos individuais e cultivo de estilo de vida satisfaz a esquerda pequeno-burguesa e, cada vez mais, a afasta da esquerda real, que está ao lado do povo.
Nem é preciso dizer que esse pessoal abraça acriticamente a política identitária – e faz isso, em boa medida, por comodismo. Que sentido há em brandir a suposta superioridade de caráter do vegano quando o povo está na fila dos restos de osso do açougue para fazer uma sopa ou algo do gênero? Os identitários têm verdadeira obsessão pelas “posições de poder” das quais foram alijados e fazem disso a sua grande reivindicação. Querem conquistar essas posições no interior do sistema de exclusão, que é o capitalismo, numa espécie de revanche, mas não questionam o sistema em si. Como pode tal política ser de “esquerda”?
O pior da “branquitude” que entrou no modo “detox” e se percebe como gente de caráter superior é que, amanhã ou depois, vai dar seu voto ao primeiro identitário capacho do sistema.
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