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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

Os quadrinhos de Guilherme Wanke

As mediocridades e as paranoias da classe média

Outro finalista da feira de quadrinhos Des.gráfica 2017 foi a HQ “Sonho médio”, de Guilherme Wanke. Nela, a trama remete aos costumeiros discursos da segurança pública brasileira; vale lembrar, em nosso país, policiais truculentos, geralmente ligados à tortura e à repressão das liberdades civis, ocupam cargos de chefes da segurança pública e, para justificar seus desmandos, costumam declarar que, enquanto cidadãos honestos permanecem trancafiados atrás das grades e muros dos respectivos condomínios, os delinquentes roubam, soltos nas ruas. Todavia, pessoas, assim equivocadas, esquecem-se de que, justamente, quem promove injustiças sociais, as verdadeiras causas da criminalidade, costuma se esconder, justamente, nos condomínios fechados; historicamente, quem se separa da população pobre pertence às classes dominantes, seja na casa grande e nos sobrados, em tempos de Brasil colonial, seja nos condomínios fechados da atualidade. Dessa forma, em termos de exploração social, cabe indagar se os verdadeiros ladrões se encontram dentro ou fora desses condomínios.

A novela gráfica “Sonho médio” não se mostra, explicitamente, uma HQ engajada com injustiças sociais; na HQ tematizam-se o tédio e o marasmo da classe média apedeuta e sem imaginação, afundada no lodo da própria mediocridade. Para ilustrar isso, comentam-se, brevemente, três passagens da HQ; a primeira delas se mostra logo nas páginas iniciais quando se trata das garagens, apresentadas em forma de labirintos mutantes em função das presenças irregulares dos automóveis no decorrer do tempo, cuja passagem se marca pela alternância entre as luzes e as sombras, que não se sabe bem se são naturais ou artificiais.

Nesse contexto, o espaço da garagem se contrapõe a outros espaços, entre eles, o espaço fora do condomínio, visto através das grades, pois, nesse espaço exterior, as mudanças fluem; isso se verifica nas pichações nos muros e apagadas depois, com o ponto de vista sempre do sujeito aprisionado na situação de condômino, imerso no apartheid social semeado por ele mesmo.

Ironicamente, o modo de vida rotineiro e mecânico faz com até mesmo o lazer se torne mecanizado e repetitivo; quando viaja, nosso sujeito segue constantemente nos mesmos lugares, isto é, Portugal, França e Estados Unidos. Sabe-se disso mediante as imagens dos souvenirs dispostos nos móveis dos apartamentos; entre tantas cidades do mundo, nosso sujeito visita Nova Iorque duas vezes – as imagens da caneca e da estátua da liberdade apontam para isso –.

Por fim, as cenas mudam constantemente; a novela gráfica se mostra um delírio não de profusão de formas, mas da sutileza delas, quando pequenas mudanças indicam grandes constâncias. Na expressão dessa mecanização do cotidiano, reforçado pela fuga da civilização representada pelos grandes condomínios, há uma chave semiótica, também constante, que organiza a narrativa no tempo e lhe dá coerência plástica, ou seja, a alternância entre claro e escuro nos jogos de sombras. Essa repetição cromática, que, eventualmente, sugeriria mudanças através do tempo, revela-se a falsa alternância vivida pelo sujeito da trama, uma vez que ela se desdobra sempre em novas repetições.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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