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Coluna

‘A Mãe’ – José de Alencar

"O sacrifício da mãe pelo filho e martírio sublime da maternidade dão um ar de permanência à peça"

“Mãe,

Em todos os meus livros há uma página que me foi inspirada por ti. É aquela em que fala esse amor sublime que se reparte sem dividir-se e remoça quando todas as afeições caducam.

Desta vez não foi uma página, mas o livro todo.

Escrevi-o com o pensamento em ti, cheio de tua imagem, bebendo em tua alma perfumes que nos vêm do céu pelos lábios maternos. Se, pois, encontrares aí uma dessas palavras que dizendo nada exprimem tanto, deves sorrir-te; porque foste tu, sem o querer e sem o saber quem me ensinou a compreender essa linguagem.” (Alencar, José. “A Mãe”. 1859)

A trajetória literária do escritor José de Alencar inicia-se no ano de 1853, pouco após ter se formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco. Foi convidado por um colega de turma para a redação do Jornal Correio Mercantil, onde publicava crônicas leves, escritas “ao correr da pena”, que era, aliás, o nome da sua coluna.

Foi, contudo, a polêmica que iniciou em face do poema épico “A Confederação dos Tamoios” o marco inicial de sua participação direta na vida intelectual do país.

Esse poema de Gonçalves Magalhães foi editado e apoiado pelo próprio Imperador Dom Pedro II e o seu lançamento foi a oportunidade para que Alencar estabelecesse sua crítica àquele que era o maior expoente do romantismo brasileiro. Uma crítica para ele próprio Alencar pudesse depois criar as bases para o seu próprio projeto literário indianista através da publicação do Guarani (1857).

Alencar e Gonçalves Magalhães partilhavam a ideia do indianismo e da poesia épica como eixo de afirmação da nacionalidade Brasileira. O jovem crítico literário criticava o poeta protegido por Pedro II pelo uso abusivo dos cronistas na elaboração do enredo e o fato de a composição de um poema épico ter partido, em Magalhães, por questões triviais relacionadas a assassinato e vingança no bojo da guerra entre os índios Tamoios, aliados aos franceses, em luta contra os portugueses do Rio de Janeiro e São Paulo (1555). No caso do Guarani, esses temas triviais (a guerra e a vingança) se justificavam por se tratar de um romance, e não de um poema fundacional da civilização brasileira.

A polêmica literária de 1856 pode ser considerada o ponto de partida da produção artística e da crítica cultural do autor de Iracema. Sua obra perpassou pelo romance, pelo jornalismo e pelas artes cênicas.

Essa atividade de escritor foi acompanhada a partir do ano de 1860 pela carreira política, quando Alencar foi eleito deputado provincial do Ceará pelo Partido Conservador. A interface entre política e literatura é destacada por Araripe Júnior, o primeiro biógrafo do escritor com quem conviveu pessoalmente.

Nesta primeira fase da obra do escritor, vemos além do indianista “O Guarani”, peças teatrais como “O Demônio Familiar” (1857) e “A Mãe” (1859) e romances voltados especialmente para o público feminino como “Lucíola” (1862) e “Diva” (1864), vem as características mais próprias do romantismo, com a sublimação do trivial e o graciosíssimo na descrição dos personagens e da natureza.

A partir de 1870, Araripe Jr. vê uma mudança no estilo literário que estaria relacionada com a decepção com política: foi naquele ano que José de Alencar sofreu a decepção de ser preterido por D. Pedro II para uma vaga de Senador Vitalício. Teria havido uma profunda mágoa pessoal que não só afastou o escritor da política, como acentuou nos seus textos o caráter polemista e crítico, nem sempre significando com isso bons resultados estéticos. Nesses livros subsequentes, o biógrafo aponta um viés que se relaciona ao seu humor depressivo e taciturno, após a sua reclusão no bairro da Tijuca.

Falemos agora um pouco da produção teatral de José de Alencar.

A maior parte das suas peças teatrais foram escritas nessa sua primeira fase de “juventude” (1853/1870). Algumas delas foram um sucesso e outras foram um fracasso, como foi o caso de “O Jesuíta” (1875) que correspondeu ao último trabalho e expressou o fim melancólico da carreira do artista.

A peça “A Mãe” foi anunciada ao público fluminense pelo Correio Mercantil no dia 14 de março de 1860.

Para os padrões da época, o espetáculo foi um sucesso. Foram nove apresentações, além de elogios da crítica, incluindo uma nota positiva de Machado de Assis, que tinha então vinte poucos anos de idade e iniciava sua carreira de crítico literário na imprensa carioca:

“Acaba de publicar-se o drama do Sr. Conselheiro José de Alencar, intitulado Mãe, já representado no teatro Ginásio. Por este meio está facilitada a apreciação a frio no gabinete das incontestáveis belezas dessa composição. O autor das “Asas de um Anjo” é um dos que melhor reúnem os requisitos necessários a um autor dramático” (Diário do Rio de Janeiro.).

Trata-se de uma tragédia envolvendo os temas da escravidão e da maternidade.

A protagonista Joana aparece como mãe de leite do estudante de medicina Jorge. Ao longo da peça sabemos que a escrava, na verdade, era a própria mãe de seu senhor, cujo pai de cor branca era então desconhecido, de modo que tal condição desonrosa foi escondida do filho como meio de preservá-lo. Joana e Jorge viveram anos juntos, na visão dele como senhor e escrava, e no coração dela como mãe e filho.

Esse tipo de situação envolvendo enlaces extraconjugais de senhores brancos e escravas são bastantes conhecidos na história do Brasil Colonial, podendo-se dizer o mesmo de outras formas ilícitas de casamento. O próprio José de Alencar de certa forma tivera experiência parecida com o personagem Jorge. Foi o primeiro dos oito filhos de um padre e senador com sua prima: filho ilegítimo de padre, preterido em testamento e provocado em vida por seus adversários por causa dessa mancha do seu passado.

Na peça “A Mãe”, Jorge se vê compelido a salvar a honra do pai de sua pretendente Elisa, que intentava suicidar-se por não conseguir honrar dívidas pecuniárias junto ao especulador Vicente.

Como meio de salvar o seu futuro genro, Jorge, mesmo tendo a afinidade e amor de filho com sua mãe preta Joana, aceita vender sua escrava provisoriamente até levantar os fundos para quitar a dívida.

Ao mesmo tempo que Jorge desconhecia ser filho de sangue de Joana, intuitivamente a via como tal.

Essa sintonia não era incomum num tempo em que predominava a figura da ama de leite. Acreditava-se que o leite da mulher negra era mais forte do que o da mulher branca. Por isso, nas fazendas, a escrava que tinha acabado de parir era transferida para a casa de seu senhor para amamentar o recém-nascido branco e tomar conta da criança em tempo integral. Chamava-se essa criança de “nho-nhô”. Já o próprio filho escravo dificilmente tinha acesso ao leite materno e era cuidado por outras escravizas que o alimentavam com uma papa de mandioca ou com leite animal não pasteurizado, o que contribuía para o grande número de óbitos. Já os vínculos estabelecidos entre a ama de leite e o filho do dono de Engenho constituíram, como não poderia deixar de ser, um elemento constitutivo da psicologia brasileira. O vínculo afetivo que contribuiu para a ideia da democracia racial aventada na conhecida tese de Gilberto Freire.

O término da peça “A Mãe” é trágico. Ao fim e ao cabo, Jorge descobre a verdade sobre a sua filiação. Mesmo sendo um estudante de medicina, educado e professor de letras e artes, apenas por ser noticiado ser filho de escrava, vê o seu casamento barrado por Gomes, o mesmo genro que ajudara a quitar a dívida e salvar a honra. Como meio de garantia a felicidade do filho e a manutenção do segredo ao público, a mãe Joana resolve se matar tomando veneno. Sua morte apaga a marca trágica da escravidão na vida do seu filho e garante o seu casamento com a mulher amada.

O sacrifício da mãe pelo filho e martírio sublime da maternidade dão um ar de permanência à peça “A Mãe”. Esse amor incondicional é uma realidade ontem e hoje.

No mais, a obra ainda denota interesse, especialmente por seu pioneirismo na descrição e abordagem de personagens dos baixos extratos sociais. Do enredo não há os tipos burgueses citadinos de muitas outras histórias de Alencar, mas o pequeno funcionário público arruinado, o estudante pobre, escrava de ama, o meirinho, o especulador, etc.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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