No artigo Matéria de que se faz democracia, publicado pelo jornal Folha de S.Paulo, o sociólogo Muniz Sodré procura analisar a crise do regime político no principal país do mundo, os Estados Unidos.
Segundo a tese de Sodré, a “democracia” norte-americana estaria entrando em colapso. Ele inicia o texto citando o bilionário Bill Gates, dono da Microsoft, que teria se dito “surpreso” com “a fragilidade da democracia norte-americana”.
Antes de entrarmos no mérito do que é a tal “democracia” norte-americana e da apreciação que Sodré faz dela, chamamos a atenção da pessoa que ele cita como argumento de autoridade. Bill Gates, um notório funcionário do chamado “Estado profundo” norte-americano, é apresentado pelo sociólogo como um mero “bilionário, filantropo, fundador da Microsoft, alinhado entre os homens mais influentes do século” que “espelha o sentimento de metade das pessoas que não votaram na ameaça a essa democracia”. Sodré ainda dirá que Gares “inaugura a preocupação dos americanos de bom senso com a sua própria estabilidade institucional”.
A citação de Bill Gates chama a atenção porque qualquer analista mais criterioso diria que, se Bill Gates saiu em defesa da tal “democracia”, é porque a tal “democracia” não deve ser coisa que preste. Sodré, no entanto, faz o contrário. É como se dissesse: a ameaça à “democracia” é tão grave que até bilionários estão preocupados com ela.
Bill Gates, por meio da Microsoft, é um dos principais aliados dos sistemas de inteligência norte-americanos na espionagem da população de todo o planeta. Seja de maneira direta ou indireta, ele e sua empresa está por trás de todo tipo de conspiração sanguinária produzida pelo Estado norte-americano no último período: golpes de Estado, assassinatos e prisões. Só faria sentido dizer que Gates está preocupado com a ameaça à “democracia” se estivesse em marcha uma ameaça mais macabra do que o mecanismo do qual ele faz parte, o que é absurdo.
Bill Gates é parte da máquina mais mortífera e nefasta da face da Terra, que é o imperialismo. Isto é, a ditadura dos grandes monopólios, que, para manter a sua dominação, são capazes de exterminar um povo inteiro. Bill Gates é uma engrenagem da máquina monstruosa cuja verdadeira face se viu na Faixa de Gaza nos últimos 15 meses.
Falar que a “democracia” estaria se extinguindo e que algo pior estaria por vir é uma ladainha que serve somente para ocultar o que é a verdadeira “democracia”: a ditadura cruel e implacável do imperialismo. Quem fala de “ameaça à democracia”, mas não fala em imperialismo, está, objetivamente, embelezando a atuação do imperialismo e, assim, ajudando a sustentar a sua ditadura.
Sodré tem o mérito de, ao menos, não acreditar que tudo são flores na “democracia” norte-americana:
“A crer na encenação hollywoodiana, é nas delegacias e nos tribunais que se visibiliza a essência da república, uma igualdade pró-forma, cúmplice da escravidão e da discriminação dos não brancos, encoberta pela potência material”.
Seu erro, no entanto, está em acreditar que, agora, somente porque Donald Trump venceu as eleições, essa “democracia” teria mudado substancialmente de qualidade. Essa ideia está presente no seguinte trecho:
“Já em 1938, Roosevelt temia: ‘Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país’. Ou seja, o fascismo sempre esteve latente no senso comum. Por isso, cresceu, reinventando-se no neofascismo moldado pela IA.”
O que Sodré não consegue explicar é: que tanta diferença há entre os Estados Unidos de 2025 e os Estados Unidos de 2024? Por que Bill Gates fala em “fragilidade” da “democracia”?
Na prática, não há uma diferença tão sensível no regime político. Não foram construídos campos de concentração, nenhuma raça foi decreta superior a outra, não foram fechados sindicatos, nenhum partido político foi cassado. A única coisa que mudou é que a “democracia” norte-americana falhou no sentido de que ela não deu a vitória nas urnas ao candidato de preferência de Bill Gates e todo o aparato que ele representa.
Essa é a questão fundamental sobre a “democracia” que o autor não consegue entender. A “democracia” norte-americana nada mais é que um nome fantasia para a ditadura brutal dos monopólios sobre o regime político. E essa ditadura é, por natureza, profundamente autoritária.
A ditadura da “democracia” norte-americana cometeu todos os crimes do nazismo e do fascismo italiano em escala industrial. Não haveria sequer, portanto, como ela ser extinta e dar lugar a algo diferente – o Estado norte-americano, na medida em que representa os interesses dos grandes monopólios, é necessariamente profundamente contrarrevolucionário.
Se Bill Gates está preocupado com o fim da “democracia”, o leitor pode ficar sossegado. É boa notícia para o restante da humanidade.