Em termos mais gerais, a dívida pública é o valor que o governo federal, estadual ou municipal toma emprestado para cobrir gastos, quando as receitas não são suficientes para pagar os gastos ou para realizar investimentos estruturantes. Esse endividamento pode ser interno (com credores nacionais, como bancos, fundos de pensão, investidores) ou externo (organismos internacionais, bancos estrangeiros etc.). Normalmente esse endividamento funciona através da emissão de títulos públicos.
Na realidade brasileira, no entanto, vigora o chamado “Sistema da Dívida”, através do qual a dívida pública deixa de ser um simples instrumento de financiamento do Estado e torna-se um mecanismo de transferência permanente de recursos públicos para o setor financeiro, sem contrapartida real para a sociedade. A organização que avançou bastante no desenvolvimento do conceito de “Sistema da Dívida”, foi a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), que é uma associação sem fins lucrativos, que tem como objetivo principal de promover a transparência, fiscalização e debate sobre o endividamento público do Brasil.
No Sistema da Dívida, o endividamento é gerado sem que ocorra um investimento ou prestação de serviço correspondente. Cria-se uma dívida, emite-se títulos públicos, e não há nenhum investimento que justifique a geração da dívida. Com a iniciativa, os governos violam a Constituição Federal, que proíbe a emissão de títulos públicos para pagar apenas juros. É o princípio constitucional conhecido como a “Regra de Ouro” das finanças públicas, prevista no artigo 167, inciso III, da Constituição Federal do Brasil. Diz o artigo 167, inciso III: “São vedados: (…)
III – a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa e aprovadas pelo Poder Legislativo por maioria absoluta;”.
Ou seja, o governo não pode emitir títulos públicos (ou realizar outras operações de crédito) para financiar despesas correntes, como pagamento de juros, salários e custeio da máquina pública. Essa diretriz visa, obviamente, evitar que o Estado entre em um ciclo vicioso de endividamento, no qual toma novos empréstimos apenas para pagar despesas correntes, gerando desequilíbrio fiscal e acumulando dívidas sem retorno na formação de patrimônio público. Vale observar que manter o Sistema da Dívida, significa transgredir permanentemente a Constituição Federal. No entanto, como o funcionamento do Sistema interessa ao grande capital, os poucos que denunciam as violações constitucionais são olimpicamente ignorados.
Uma outra característica do Sistema é a destinação de uma parte muito grande do Orçamento Público ao pagamento de juros, amortizações e encargos da dívida, em detrimento dos investimentos em áreas essenciais, como Saúde e Educação. Quando se estuda com profundidade e isenção os indicadores da dívida se constata que o “problema fiscal” do Brasil é o verdadeiro problema da dívida pública e não os gastos sociais.
O Sistema da Dívida, possui mecanismos financeiros complexos, justamente para dissimular os impactos dos gastos com a dívida, que são inaceitáveis, considerando a realidade brasileira. Esses mecanismos incluem operações financeiras sofisticadas, transformação de dívidas privadas em públicas e taxas de juros elevadas, que beneficiando diretamente o sistema financeiro, são justificadas “tecnicamente” em qualquer conjuntura, faça chuva ou faça sol.
Se observarmos o período que vai de 2004 até hoje, o Brasil esteve quase sempre entre os três países com as maiores taxas reais de juros do planeta. Acompanhado no ranking de outras nações subdesenvolvidas, vítimas também de um sistema da dívida, ou acometidos por crises muito graves, como: Turquia, Rússia, Argentina, África do Sul, Indonésia, México, Colômbia, Índia e Filipinas. Em parte significativa do período apontado, o Brasil oscilou entre 1º e 4º do mundo. Em maio último, o ranking era o seguinte:
1º Turquia (10,47%)
2º Rússia (9,17%)
3º Brasil (8,65%)
4º África do Sul (6,61%)
5ª Colômbia (4,68%)
6º México (4,43%)
7ª Indonésia (4,15%)
8ª Argentina (3,92%)
9ª Índia (2,66%)
10º Filipinas (2,34%)
Na lista acima, entre os dois países que tem taxas reais mais elevadas que a do Brasil, Turquia e Rússia, o primeiro tem inflação anual de 35,51% e o segundo de 10,06%, em ambos os casos, acumulados bem superiores ao que apresenta a economia brasileira. Chama a atenção também, na lista, o fato de que todos os países são subdesenvolvidos, ou “em desenvolvimento”. Esse fenômeno não parece ser coincidência, mas sim um reflexo de estruturas financeiras e relações históricas que perpetuam a vulnerabilidade econômica dessas nações. Um dos fatores para o fenômeno – se poderia mencionar vários – é a relação entre nível de juros e percepção de risco. Países subdesenvolvidos são associados com o maior risco econômico e político por parte dos investidores internacionais. Para atrair capital externo e evitar a fuga de investimentos, especialmente em cenários onde países imperialistas elevam suas taxas de juros, os países atrasados são forçados a oferecer rendimentos mais altos em seus títulos de dívida pública, operando aí a engrenagem do sistema da dívida. Essa necessidade de oferecer juros elevados aumenta o custo do endividamento, onerando os orçamentos públicos e desviando recursos que poderiam ser investidos em áreas fundamentais.
Os países atrasados, na falta de recursos financeiros internos para financiar suas atividades governamentais e déficits fiscais, tornam-se altamente dependentes de empréstimos externos, seja de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, seja de investidores privados estrangeiros. Essa dependência cria um ciclo vicioso de endividamento, onde novos empréstimos são necessários para pagar dívidas anteriores, agravando a situação financeira. Uma ilustração completa desses problemas temo no recente acordo realizado entre a Argentina e o FMI, que prevê uma nova linha de crédito estendida de 48 meses, no valor de US$ 20 bilhões. O acordo impôs uma série de condicionalidades, como compromissos como a desregulamentação do setor de energia e metas de acumulação de reservas cambiais.
O Sistema da Dívida está por trás de todas as atrocidades cometidas contra a previdência social, das privatizações, assim como dos cortes orçamentários em geral. Toda a construção analítica que fazem o “mercado” e a grande mídia, é de que o déficit nominal seria decorrência dos gastos sociais, como bolsa família, previdência, saúde e educação. Nessa interpretação, os juros altos e a dívida, seriam uma consequência do “descontrole fiscal” e não sua causa. Como o governo gastaria demais com “medidas populistas”, o Banco Central (uma instituição, supostamente, “terrivelmente técnica”) é forçado a manter juros nas alturas, crescendo assim a dívida pública em relação ao PIB (hoje em 78,6%).
Uma das características centrais do sistema da dívida, é a falta de transparência. Não há clareza sobre a origem e a destinação dos recursos captados através dos títulos emitidos. Por exemplo, como denuncia há anos a ACD, o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos, o que se constitui em um dos mecanismos que gera dívida pública. As sobras de caixa são aqueles depósitos que os bancos recebem da clientela (contas correntes, investimentos etc.), o qual, muitas vezes, nem todo ele é emprestado. O excedente é chamado de sobra de caixa.
Historicamente, o Banco Central utilizava as operações compromissadas para controlar essa liquidez. Nessa operação, o BCB vende títulos públicos aos bancos, com acordo de recomprar mais tarde, pagando juros. Esse sistema acaba aumentando a dívida pública, claro, já que usa títulos do Tesouro. A partir da Lei 14.185/2021, o BC foi autorizado a receber depósitos voluntários dos bancos, remunerando-os com uma taxa de juros, normalmente alinhada à Selic. Diferente das operações compromissadas, esses depósitos não são contabilizados diretamente na dívida pública. A ACD chama a remuneração das sobras de caixa de “Bolsa banqueiro”, na medida em que o sistema garante lucro fácil aos bancos, sobre um dinheiro que está parado. Algumas estimativas apontam que essa política custou cerca de R$ 1 trilhão aos cofres públicos nos últimos 10 anos.
Esse sistema, que recompensa os bancos por não emprestarem, claramente reduz o incentivo ao crédito, com prejuízo dos investimentos. O pagamento de juros sobre as reservas, no caso do Brasil em taxas muito elevadas, acaba funcionando como um “subsídio” indireto aos bancos (bolsa banqueiro), permitindo lucros garantidos sem risco de empréstimo ou investimento. O Banco Central, ao pagar juros sobre reservas, além de favorecer os bancos com dinheiro público, diminui os valores que poderiam ser repassados ao Tesouro como senhoriagem, isto é, o lucro decorrente da emissão de moeda pública (aliás, a PEC 65/2023, que tramita no Congresso Nacional, prevê o não repasse pelo BCB dos lucros da senhoriagem, ao Tesouro Nacional).
O Brasil não é o único país do mundo que adota esse sistema. Nos EUA, por exemplo, o IOER (Interest on Excess Reserves), ou Juros sobre Reservas Excedentes, foi adotado a partir de outubro de 2008, na brutal crise financeira que impactou o mundo todo. Pelo sistema, o Fed (banco central dos Estados Unidos), paga uma taxa de juros aos bancos comerciais sobre os fundos que estes mantem no Banco Central, acima do mínimo exigido como reserva. São as chamadas “reservas excedentes”. O objetivo da medida é controlar a taxa de juros de curto prazo e gerenciar a liquidez no sistema financeiro. Ao pagar juros sobre o dinheiro extra depositado pelos bancos, o Fed cria um “piso” para a taxa dos fundos federais, na medida em que os bancos não teriam motivo para emprestar dinheiro a outros bancos por taxas menores do que a oferecida pelo próprio Fed. Com a crise de 2008, os volumes de reservas bancárias cresceram muito, tornando a política ainda mais relevante. As críticas ao sistema nos EUA são muito duras: desincentivo à concessão de crédito pelos bancos, “subsídio” ao sistema bancário, risco de inflação, custo ao contribuinte etc.
O Sistema da Dívida Pública tem ainda alguns outros aspectos, os quais exploraremos em outro texto. Apesar da economia brasileira ser a nona do mundo, o país está na 84ª posição em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), posição quer recua para a 105ª, quando se leva em conta a desigualdade social. Ademais, cerca de um quarto dos brasileiros precisam de auxílio financeiro mensal, para não passar fome. Boa parte dessa disparidade entre a magnitude da riqueza produzida e as condições socioeconômicas da população brasileira, pode ser explicada pelo funcionamento do Sistema da Dívida Pública.