A psicanalista Maria Rita Kehl se tornou alvo da fúria identitária após criticar grupos ligados à direitista ideologia woke ao que chamou de “nichos narcísicos”, isto é, círculos que inviabilizam o diálogo e promovem o que chamou de “lugar de cale-se”. As declarações foram dadas ao programa Dando a Real, exibido na TV Brasil, e geraram reações agressivas de setores do identitarismo, que passaram a atacar a psicanalista.
Durante a entrevista, Kehl argumentou que, embora o identitarismo possa servir como um instrumento de organização e reconhecimento para determinados grupos, ele se torna um problema quando essas mesmas comunidades se fecham em si mesmas e rejeitam qualquer tipo de crítica externa. Para ilustrar sua análise, a psicanalista mencionou o movimento negro e o movimento LGBT, explicando que, ao se isolar em bolhas, esses setores constroem barreiras contra aqueles que não pertencem ao grupo.
A polêmica se intensificou quando Kehl apresentou um exemplo prático de como isso funciona: “eu posso, uma mulher de classe média, descendente de alemão, branca, criticar um negro se ele estiver espancando o filho dele, por exemplo. Eu posso tentar interferir. Ele pode responder: ‘não se mete na minha vida’. Tá, é legítimo. Eu posso dizer: ‘mas espera aí, eu não posso ver uma cena dessas?’. Agora, se ele diz: ‘você não pode falar porque você é branca’, eu acho que isso não pode dar certo”.
O comentário gerou uma onda de ataques nas redes sociais, principalmente por parte de militantes do autointitulado movimento negro. O escritor Ale Santos foi um dos primeiros a reagir, associando as falas de Kehl ao fato de ela ser neta de Renato Kehl, figura histórica do eugenismo no Brasil. Para ele, a psicanalista estaria reproduzindo a política de seu avô ao se colocar como uma “especialista de negros” – algo que ela, como pode ser visto, não fez.
A professora Lívia Natália, da UFBA, também criticou a escolha de exemplo de Kehl, alegando que reforçaria o estereótipo do homem negro como violento. Outros internautas acusaram a psicanalista de “racismo embutido” e disseram que ela deveria estudar mais sobre identitarismo e branquitude antes de opinar sobre o tema.
A reação contra Kehl não se limitou a ataques nas redes sociais. Seu verbete na Wikipédia foi editado para destacar sua ligação familiar com o eugenista Renato Kehl, ignorando sua trajetória profissional. A estratégia de reduzir a biografia da psicanalista a “neta do pai da eugenia brasileira” revela um modus operandi recorrente do identitarismo: desqualificar o oponente por meio de atributos biológicos ou familiares, como se esses fatores fossem determinantes das ideias do indivíduo.
Em declaração ao Diário Causa Operária (DCO), Maria Rita Kehl publicou, nesta edição, uma coluna que havia sido publicada em outubro de 2023 na Carta Capital, adicionando um comentário acerca da perseguição que sofre agora. Confira o artigo clicando no link abaixo:
A ironia desse tipo de ataque é evidente. Os mesmos que dizem combater o racismo e qualquer forma de preconceito apelam para a mesma coisa, defendendo que características hereditárias definem quem uma pessoa é.
O caso de Kehl ilustra bem como o identitarismo, que supostamente deveria valorizar a diversidade, se torna incapaz de lidar com opiniões diferentes. A mitologia grega fornece uma metáfora precisa para esse fenômeno. Narciso, personagem que inspirou o termo “narcísico”, era incapaz de amar qualquer um além de seu próprio reflexo. Esse é o destino do identitarismo: um movimento que, ao se fechar em sua própria bolha, rejeita qualquer crítica e se condena ao isolamento.