Foi premiado com o Oscar para melhor filme Internacional o filme “Zona de Interesse” que teve na direção o cineasta Jonathan Glazer. É um filme que retrata a vida de uma família alemã que vive a poucos metros de Auschwitz, em pleno Holocausto nazista. O filme é baseado em um livro de mesmo nome do autor Martin Amis, publicado em 2014. Glazer argumenta que o tema do seu filme não é o Holocausto, mas algo mais duradouro e difundido: a capacidade da sociedade humana de conviver com atrocidades e de se beneficiar delas.
O filme passa a maior parte do tempo retratando a vida de uma família burguesa com seu cotidiano banal em uma casa com todos os confortos, mas até um pouco limitados, como a minúscula piscina e o próprio interior bastante austero. O personagem mais envolvido nos prazeres e belezas da casa é, inevitavelmente, a dona de casa Hedwig Höss, esposa do comandante nazista do campo de concentração de Auschwitz, que junto dos cinco filhos compõem a maior parte das cenas do filme. A pergunta de todos é: como podem essas pessoas levar uma vida normal ao lado do local onde se cometem diariamente assassinatos e atrocidades contra uma etnia perseguida somente por existir como tal?
A resposta de Glazer é limitada, porque faz da família quase uma família “normal” ao descrever seus personagens não como monstros, mas praticantes de “horrores impensados, burgueses e ambiciosos”, e que buscam jogar as atrocidades para debaixo do tapete e fingem que nada sabem sobre o que ocorre no campo de concentração.
Hoje há uma grande revisão da ideia original do holocausto, fortemente divulgada pelos sionistas de Israel, de que foi uma violência dirigida apenas contra os judeus. Sabe-se que a perseguição nazista se dirigiu contra comunistas, homossexuais, ciganos e foi algo universal. Não foi só um capítulo da história de uma etnia, mas uma repetição mais concentrada e “científica” dos genocídios coloniais, juntamente com a lógica e as teorias raciais que os fundamentava. O sionismo conseguiu fazer uma operação ideológica, para convencer que para garantir que nada disso acontecesse de novo era necessário construir o Estado judeu.
Hoje a situação do genocídio cometido pelo Estado judeu mostra a verdadeira natureza deste Estado, que foi construído em cima da violência sistemática contra os palestinos, desde pelo menos 1948 e até antes. E, ao contrário do filme, as atrocidades cometidas pelas Forças Armadas de Israel em Gaza não se resumem a pequenos detalhes como a fumaça que é produzida pela queima dos corpos ou um ruído breve de gritos de horror e tiros. E, no entanto, os israelenses não se preocupam o mínimo com o massacre que eles estão promovendo logo ali no território totalmente controlado pelos seus comandantes do grande campo de concentração. Muito pelo contrário, os israelenses riem e se divertem sadicamente com a violência que fazem, destroem um hospital por inteiro, matam pacientes e médicos e depois colocam fogo. São capazes até de fazer uma festa rave a poucos metros do inferno.
A sociedade burguesa como um todo é culpada destes crimes. A Europa, com seus campos verdejantes, com seus teatros e restaurantes de luxo, com seus cafés “cult” não deixa que o Horror pelo qual são cúmplices atrapalhem sua festa. E quem ousar mostrar a verdade, defender a Palestina livre é perseguido e punido como autêntico criminoso. E, como na Alemanha de Hitler, a liberdade de expressão é combatida como uma arma de guerra. Os Estados Unidos, que são os verdadeiros comandantes do campo de concentração de Gaza, financiam com gasto de muitos bilhões de dólares a matança. Porque, afinal, Israel tem direito de se defender…
Na festa do Oscar, o diretor do filme corajosamente tomou partido em cada uma dessas disputas. Ao receber o prêmio, afirmou que “todas as nossas decisões foram tomadas para refletir e confrontar o presente, não para dizer ‘veja o que eles fizeram naquela época’, mas ‘veja o que fazemos agora'”, rejeitando a ideia de que comparar os horrores cometidos por Israel hoje com os crimes nazistas seria por si só minimizar o Holocausto, e não deixou dúvidas de que era sua intenção traçar uma continuidade entre o passado monstruoso e o nosso presente monstruoso.
E Glazer foi mais longe: “Estamos aqui como homens que se recusam a permitir que as suas identidades judaicas e o Holocausto sejam manipulados por uma ocupação que arrastou tantas pessoas inocentes para o conflito, tanto as vítimas do 7 de outubro em Israel como as do ataque em andamento em Gaza.” Para o diretor, é antiético usar o trauma do Holocausto como justificativa ou cobertura para as atrocidades cometidas hoje pelo regime israelense.
Glazer terminou seu discurso- dedicando o prêmio a Aleksandra Bystro’ Ko’odziejczyk, uma polaca que secretamente levou comida aos prisioneiros de Auschwitz e que lutou contra os nazis nas fileiras do exército polaco. No filme essa senhora é uma garota fotografada em preto e um branco forte que também levava algumas frutas para atenuar a fome dos judeus.
A reação dos judeus israelenses foi fulminante. Essas pessoas não ignoram que uma máquina mortífera em escala industrial está operando além de seu quintal. Eles simplesmente aprenderam a viver uma vida plena no contexto do genocídio. A reação ao discurso do diretor foi uma carta aberta de 400 cineastas e executivos do cinema que não deixou de repetir os jargões sionistas de Israel. Na carta eles declaram: “Somos criativos, executivos e profissionais judeus de Hollywood. Refutamos o fato de o nosso judaísmo ter sido sequestrado com o propósito de estabelecer uma equivalência moral entre um regime nazista que procurou exterminar uma raça de pessoas e uma nação israelita que procura evitar o seu próprio extermínio. Cada morte de civis em Gaza é trágica. Israel não tem como alvo civis. Tem como alvo o Hamas. No momento em que o Hamas libertar os reféns e se render, será o momento em que esta guerra dolorosa terminará. Isto tem sido verdade desde os ataques do Hamas de 7 de outubro.” É ridícula a afirmação de que Israel não tem como alvo civis, depois de mais de 35000 vitimas, a maior parte de mulheres e crianças.
Não há dúvida que o filme de Glazer parece muito contemporâneo. Depois de mais de cinco meses de massacres diários em Gaza, com Israel a ignorar as ordens do Tribunal Internacional de Justiça e os governos ocidentais continuando a enviar armas, tentam tornar o genocídio mais uma vez apenas um ruído de fundo.
Em uma das cenas mais memoráveis do filme, um pacote contendo roupas íntimas femininas roubadas de internas de Auschwitz chega à casa de Höss. A esposa do comandante, Hedwig estipula que todos, inclusive as empregadas, possam escolher uma peça de roupa. Ela guarda um casaco de pele e até experimenta o batom que encontra no bolso.
É essa intimidade com os mortos que é assustadora. E é espantoso que alguém possa assistir a esta cena e não pensar nos soldados israelitas que se filmaram vestindo roupas íntimas das palestinas em Gaza ou a gabarem-se de roubarem sapatos e joias para as suas namoradas ou a tirarem selfies de grupo com os mortos e os escombros de Gaza ao fundo.
São tantos os ecos que a obra-prima de Glazer parece um documentário. É como se, ao filmar “A Zona de Interesse” no estilo de um reality show, com câmeras escondidas na casa e no jardim, o filme tivesse antecipado a primeira transmissão do genocídio ao vivo.
É difícil para quem viu o filme não conseguir pensar em outra coisa senão Gaza. Não se trata de fazer uma comparação com Auschwitz. Não existem dois genocídios idênticos. O muro, o gueto, os assassinatos em massa, a intenção repetidamente declarada de extermínio, a fome, os saques, a desumanização e a humilhação são repetidos diariamente. E da mesma forma, é assim que o genocídio se torna pano de fundo, é assim que muitos que estão um pouco mais afastados podem bloquear as imagens, desligar os gritos e simplesmente seguir em frente.
O que podemos fazer para impedir a normalização? Muitos dão suas respostas através de protestos, desobediência civil, envio de comboios de ajuda para Gaza ou angariação de fundos. Mas não é suficiente. Aaron Bushnell, membro do ativo da Força Aérea dos Estados Unidos, ateou fogo a si mesmo, no dia 26 de fevereiro, em frente à embaixada israelense em Washington, protestando contra a cumplicidade do imperialismo norte-americano com a guerra em Gaza. Suas palavras ainda vão nos atormentar por muito tempo. “Muitos de nós nos perguntamos: ‘O que faríamos se estivéssemos vivos durante a escravidão? Ou sob o Jim Crow no Sul? Ou sob o apartheid? O que eu faria se o meu país estivesse cometendo genocídio?’ A resposta é: você está vivendo isso. Agora mesmo.”