O imperialismo e seus agentes mais extremados, a chamada extrema direita, tem hoje um plano comum, pelo menos para a América Latina. Na verdade, não há nada de novo desde que em 11 de setembro de 1973 Pinochet implantou, com seu regime de terror, uma espécie de laboratório do neoliberalismo. É uma política de terra arrasada, de expropriação de tudo aquilo que os trabalhadores haviam conquistado com os governos de esquerda ou reformistas. Nenhuma limitação à exploração dos trabalhadores pelo capital, em muitos casos, como no Brasil, reestabelecendo formas de trabalho escravo. Privatização de tudo que for possível de ser privatizado, inclusive do Banco Central, que é o regulador por excelência do que há de mais sagrado no capitalismo: a moeda. Isso também não é novidade, pois o respeitadíssimo Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, é uma agência privada.
O exemplo mais recente da implantação deste projeto na América Latina, é o que está sendo realizado na Argentina pelo Governo Milei. Se a extrema direita tivesse vencido as eleições na Venezuela, também seria implantado lá, já que o Plano apresentado pela candidatura Maria Corina Machado é talvez ainda mais violento que o do próprio Milei. De qualquer maneira, a ameaça paira sobre todos os países da América Latina, inclusive o Brasil. No nosso caso, a ameaça é ainda pior porque, ao contrário do que muitos pensam, um próximo governo de extrema direita ou da chamada direita tradicional, não será uma simples repetição dos estragos que o Governo Bolsonaro fez, mas uma reedição piorada do Governo Milei. Porque este Governo expressa os interesses do conjunto do capital nacional argentino entrelaçados com os do imperialismo. Não é um governo da extrema direita apenas, mas a união desta com a direita tradicional, representada pelas forças em torno de Macri e a União Cívica Radical.
A trajetória recente do governo Milei
A 12 de junho, o Senado argentino aprovou a chamada “Lei de Bases”, que já tinha sido aprovada pela Câmara no último dia de abril. Esta lei é uma versão simplificada da chamada “Lei Omnibus” que não foi aprovada pela Câmara de Deputados. Foi a grande mobilização da classe trabalhadora argentina, as greves gerais, e o ambiente de revolta que se viveu em todo o país que provocaram este recuo e que estão por detrás do fato de que a versão aprovada ser um ataque um pouco menos selvagem contra os trabalhadores do que Milei pretendia inicialmente. O problema é que o movimento dos trabalhadores foi de todas as formas contido e limitado pela burocracia da direção direitista das Centrais Sindicais, e no Congresso vários deputados “peronistas” votaram a favor deste novo projeto.
Dessa forma, a lei aprovada representa uma violência muito grande contra os trabalhadores. Autoriza as privatizações nos setores da energia, saúde, transportes, defesa, finanças e fiscalidade, entre outros. Mas o pior é que torna o Governo Milei uma autêntica ditadura pelo menos até 31 de dezembro de 2025, já que concede poderes legislativos especiais ao governo.
É preciso saber que Milei, apesar de suas bizarrices, não é um louco a fazer coisas irracionais. Os planos foram elaborados com o patrocínio do grande capital argentino e tem o apoio de setores dominantes do imperialismo norte-americano, o que mostra que não é um governo de “extrema direita”. O FMI, diga-se de passagem, tem apoiado integralmente desde o início a política econômica de Milei. O partido, Libertad Avanza, está em minoria no Congresso e no Senado, mas conta com a colaboração dos partidos de direita, o PRO do ex-presidente Mauricio Macri, o apoio da União Cívica Radical (UCR) e o de alguns deputados peronistas para levar a cabo as suas políticas.
A recusa das Centrais Sindicais Argentinas em lutar contra Milei
Na Argentina existem hoje 3 Centrais Sindicais. A Confederação Geral do Trabalho (CGT) é a maior e mais tradicional , fundada em 27 de setembro de 1930. As outras duas foram fundadas em 2007 . A União Geral de Trabalhadores (UGT): resultou da união de três centrais sindicais menores. A Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA): origina-se de um grupo de sindicatos.
Diante da aprovação da Lei de Bases pelo Congresso, a 9 de maio, as centrais sindicais majoritárias e a União dos Trabalhadores da Economia Popular (UTEP) convocaram a segunda greve geral (a primeira foi a 24 de janeiro). No entanto, apesar da massividade da greve e da recusa do governo em recuar, as direções da CGT e da CTA não propuseram um novo e vigoroso calendário de greves e mobilizações, concentrando as suas esperanças na não aprovação da lei pelo Senado. É esta passividade que deu espaço de manobra a Milei e o encoraja a avançar com os seus planos.
Por outro lado, os deputados peronistas opõem-se às medidas de Milei, mas apenas de forma retórica. A maior parte deles está à espera que a insatisfação com as políticas de Milei lhes dê uma maioria que lhes permita recuperar o governo em futuras eleições, enquanto outra parte se alia ao governo ou se abstém apenas de votar.
Em contraste com esta política conciliatória, no dia 25 de maio, a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade (FIT-U) e outros partidos, como o Movimento al Socialismo (MAS) e a Política Obrera, realizaram um comício em frente à Praça do Congresso para coordenar um “plano de luta” contra o governo de Javier Milei e promover uma greve nacional de 36 horas quando a “Lei de Bases” estivesse sendo debatida no Senado. Participaram milhares de ativistas de esquerda e representantes de sindicatos, comissões internas, organizações sociais, assembleias de bairro, do movimento estudantil e de mulheres, organizações de defesa dos direitos humanos, entre outros. A iniciativa não conseguiu atrair um número significativo da massa de trabalhadores, mas foi importante para criar uma referência de luta que pode galvanizar a maioria pelo efeito das medidas de Milei.
Lei de Bases aprovada no meio de uma repressão brutal
A “estratégia” da direção da CGT foi um fracasso, como já era possível predizer. O Senado, enquanto do lado de fora a polícia reprimia violentamente a revolta da população, aprovou a Lei de Bases por apenas um voto, o da vice-presidente do Senado Victoria Villarruel, do Partido Democrático de direita. É evidente que a estratégia principal do governo foi a compra do voto de muitos senadores, mostrando que o governo Milei atua da mesma maneira que a “casta” de políticos que ele denunciava na campanha eleitoral. O caso de Lucila Crexel é ilustrativo. O seu voto favorável está diretamente ligado a um confortável e altamente remunerado cargo de embaixadora da UNESCO em Paris.
No dia 12 de junho, milhares de ativistas concentraram-se às portas do Senado. A ação violenta de policiais infiltrados foi o pretexto para a repressão generalizada contra os manifestantes. A brutal repressão policial terminou com cerca de trinta pessoas presas, em mais um episódio da escalada repressiva do governo. Repressão que é especialmente dirigida contra o movimento piquetero e os partidos da esquerda militante. Sem ir mais longe, a polícia invadiu recentemente a sede nacional do Partido Obrero.
É claro que o Governo tem tido o ódio da maioria da população, portanto a mobilização parcial, como a greve de Janeiro e a segunda greve, a passividade das direções sindicais aguardando que o parlamento burgês bloqueasse Milei são a principal causa da incapacidade da oposição de derrubar Milei. A não colocação da palavra de ordem Fora Milei de forma clara confunde os trabalhadores e não impulsiona a luta. O programa de Milei é rejeitado de forma unânime pela população. Ele já entrou em conflito inclusive com uma parte da sua base social. A liberalização dos preços dos seguros de saúde privados resultou em um aumento brutal dos preços e gerou uma reação geral contra ele, levando ao recuo do governo. Do mesmo modo, a tentativa de acabar com o financiamento das universidades públicas e de promover as universidades privadas foi anulada por uma manifestação de grandes proporções.
O grande apoio do imperialismo a Milei
Após a vitória de Milei no Senado, o FMI anunciou uma nova injeção de 800 milhões de dólares, que se juntam à dívida argentina de mais de 41 bilhões de dólares ao FMI.
É o prêmio para posicionamento do governo argentino em total sincronia com o bloco ocidental. Nas recentes visitas à Europa e especialmente aos Estados Unidos, Milei se encontrou, entre muitos outros, com Elon Musk da Tesla, Mark Zuckerberg da Meta, Tim Cook da Apple e Sundar Pichai da Google poderosos bilionários do imperialismo. A total submissão aos desígnios imperialistas é sempre surpreendente, mesmo em se tratando de Milei. Ele ofereceu aos empresários condições de trabalho precárias, matérias-primas e terrenos abundantes com acesso à energia a preços ridículos e a possibilidade do estabelecimento de novas sedes para as suas empresas na Argentina , tudo foi oferecido.
Além do apoio do FMI o governo argentino recebeu o inesperado apoio do Governo Chinês. O Banco Central da República Argentina (BCRA) anunciou que, após várias reviravoltas, conseguiu chegar a acordo para renovar uma operação com o Banco Popular da China (PBoC). A China prorrogou por dois anos o prazo de pagamento da dívida argentina de 5 bilhões de euros que expirou em junho o que, se tivesse exigido a sua liquidação, teria implicado o incumprimento da Argentina(“default”). Em contrapartida, foi anunciado que Milei visitará o gigante asiático e reunir-se-á com Xi Jinping.
De qualquer modo, o novo empréstimo do FMI ou esta prorrogação concedida pela China não impedirão a continuação da deterioração da atividade econômica. As medidas aprovadas pelo governo de Milei e as que este promoverá na mesma linha, aprofundarão a recessão.
As condições de vida da maioria dos argentinos continuam em queda livre. A inflação atingiu 276,4% em maio e 24 milhões de pessoas (51,5% da população) estão abaixo do limiar da pobreza. Dessa forma, a política de Milei irá aprofundar o descontentamento das massas, apesar da indiferença dos políticos e dos sindicatos peronistas.
Primeiros motins contra Milei, prenúncio de futuras revoltas
Na província de Corrientes, no norte do país, o governador, seguindo o exemplo de Milei, reduziu os salários dos funcionários públicos em 10%. Rapidamente eclodiram manifestações com confrontos com a polícia, lideradas por professores, guardas florestais ou membros do setor da saúde que não têm dinheiro para ir trabalhar, pagar o combustível e os bilhetes de autocarro e estão a comprar comida com os seus cartões de crédito, endividando-se. Os professores têm de trabalhar como taxistas durante a tarde para poderem sobreviver.
Na última semana de maio, os funcionários públicos também se revoltaram na província de Misiones (um estado do norte com 1,5 milhões de habitantes). Aqui, a polícia juntou-se aos manifestantes anti-austeridade, obrigando Milei a enviar agentes federais para manter a ordem. O porta-voz da polícia salientou o perigo de agitação social devido às medidas de Milei: “Fazem-nos lutar pobres contra pobres”. O governador teve de recuar.
A burguesia também está sendo atingida pela política de Milei. O Governo decidiu liberalizar as importações de produtos alimentares, medicamentos e outros bens essenciais. O seu objetivo, anunciado pelo porta-voz da presidência, era “tornar os preços mais competitivos em benefício das famílias e dos consumidores argentinos”. Qual foi o efeito desta política? A União Industrial Argentina (UIA) declarou em comunicado: “O anúncio afeta gravemente a competitividade das empresas que operam, produzem e empregam no país”. A organização que representa o setor produtivo argentino declarou que a medida implica um “tratamento desigual” dos industriais em relação aos importadores.
As divisões no seio do governo face às dificuldades em fazer avançar a sua agenda de ataque são evidentes. A recente demissão do chefe do Gabinete, Nicolás Posse, e a nomeação do ministro do Interior, Guillermo Francos, como seu sucessor, são exemplo disso.
Os membros do Governo Milei também são atingidos pela repulsa popular. O maior exemplo é o de Sandra Petovello, Ministra do Capital Humano, membro do círculo mais próximo do presidente e possivelmente a figura mais odiada do governo, juntamente com a Ministra da Segurança, a carniceira Patricia Bullrich, e o Ministro da Economia, Luis Caputo.
Sob o mandato de Sandra Petovello, e tendo em conta a situação deplorável em que se encontram milhões de argentinos, foram cortados os fornecimentos aos refeitórios sociais. Ao mesmo tempo, descobriu-se que o governo tinha 5 milhões de quilos de alimentos a apodrecer nos armazéns.
Outro merecedor de muito pouco apreço dos argentinos é Federico Sturzenegger, que foi nomeado ministro para promover “a modernização do Estado e a desregulamentação económica”. Sturzenegger é um velho conhecido da “casta” argentina. Foi secretário de Política Económica no governo de Fernando de la Rúa, aquele que foi expulso do palácio presidencial pela multidão enfurecida e que caiu em 2001. Foi deputado nacional e também presidiu ao Banco Central entre 2015 e 2018 durante o “amado” governo de Mauricio Macri. Nos últimos meses tem trabalhado como assessor ad honorem de Milei e é o autor intelectual de grande parte dos ataques implementados pelo presidente por decreto e outros incluídos no projeto de lei de bases.
A Ministra da Segurança, Patricia Bullrich tem desencadeado feroz repressão às manifestações populares. A principal medida adotada é o chamado “protocolo Antipiquete”, que está sendo questionado judicialmente pela oposição. O protocolo, de índole fascista, argumenta que o “bloqueio” das ruas pelas manifestações impede o direito de transitar pelas ruas. Pretende limitar o direito universal à liberdade de manifestação pelo direito, que pode ser limitado, de trânsito pelas ruas. Este bloqueio das ruas ocorre frequentemente pelo próprio governo, quando realiza reuniões públicas oficiais, pela realização de procissões religiosas e durante as eleições e nunca é questionado. O protocolo prevê o uso das quatro forças federais, com o reforço do serviço penitenciário federal, que intervirão diante de bloqueios, sejam parciais ou totais. Estabelece que os agentes policiais usarão uma força proporcional à resistência. Serão identificados os autores e instigadores dos bloqueios. Um juiz competente será notificado em caso de danos ambientais durante as manifestações. Haverá sanções a quem levar menores de idade aos bloqueios. Os custos ligados às operações de segurança serão cobrados das organizações ou dos indivíduos responsáveis. Haverá um registo das organizações que participam desse tipo de protesto e que agem como porta-vozes das manifestações.
A próxima “manifestação” das Centrais argentinas
As entidades sindicais e populares anunciaram que se mobilizarão no dia 7 de agosto, como parte da marcha de diversos setores pelo Dia de São Cayetano. Segundo a central sindical, sua participação visa rejeitar o decreto presidencial DNU 70/23 que promove “danos incalculáveis aos direitos e à qualidade de vida de milhões de argentinos”. Além da manifestação as entidades anunciam “novas ações que permitam intensificar a arrecadação de assinaturas” contra o mega decreto sendo que no dia 14 de gosto serão montadas mesas para coleta de assinaturas em todo o país. A CGT decidiu recentemente retirar-se do “diálogo social” com o Governo e mobilizará a Praça de Maio juntamente com as organizações sociais para o dia de San Cayetano.
“A ideia é fazer uma bênção de ferramentas em San Cayetano e depois haverá uma procissão simbólica até a Plaza de Mayo, onde haverá uma grande concentração sob o lema Pão, Paz, Terra, Teto e Trabalho. Não queremos um cenário em que surja um confronto com o protocolo anti-piquetes da Bullrich”, antecipou Nicolás Caropresi, representante do MTE, uma das principais organizações da UTEP.
A tarefa dos trabalhadores é organizar-se e lutar, não para salvar o regime capitalista argentino tentando reformá-lo, mas para pôr fim à verdadeira causa da crise argentina, o monopólio do poder econômico e político da minoria de grandes capitalistas argentinos ligados aos grandes monopólios internacionais. Expropriá-los sem indenização e colocar os seus recursos na organização da economia numa base socialista é a única forma de salvar a Argentina do abismo.