Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

Martim Cererê – Cassiano Ricardo

Resenha Livro – “Martim Cererê: o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heroes” – Cassiano Ricardo – Ed. São Paulo

“Então o negro da Angola
Levou o garôto pra escola
que o primeiro yôyô branco
fundara junto ao barranco
à borda do campo em flor.
E disse: seu professor
Aqui trago este menino
Pra vassuncê dar um jeito
De fazer dele um doutor,
Pois nunca vi neste mundo
menino mais reinador.
(Sussurrava lá dentro do mato um Brasil todo em flor).”
Neste ano de 2022 comemoraremos no Brasil o bicentenário da Independência Nacional, marco histórico da constituição do país que superou o estatuto colonial, ao menos formalmente. Certamente, trata-se de um projeto ainda incompleto, que espera uma revolução nacional que lance as bases de uma efetiva soberania política, econômica e cultural.
Neste ano de 2022, ainda comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, movimento que criou as condições para a criação de uma arte nacional tanto na sua forma quanto no seu conteúdo, superando nossa tendência de criar arte e literatura de acordo com escolas estrangeiras.
Martim Cererê do escritor paulista é certamente fruto daquele movimento iniciado em 1922.
O livro foi publicado em 1927, um ano antes do lançamento de Macunaíma, de Mário de Andrade. Contudo, o livro de poemas de Cassiano Ricardo foi certamente um sucesso de público se comparado ao mais famoso livro de Mário de Andrade, ao menos durante os anos 1920/30.
Em 10 anos foram publicadas 6 edições de Martim Cererê, sendo certo que cada publicação foi objeto de inclusão e exclusão de várias palavras, versos e poemas inteiros, de modo que se pode dizer que Martim Cererê foi realmente (re)escrito entre os anos de 1920/1960.
Inicialmente, o livro se situava dentro da proposta do movimento “Verde Amarelo” constituído por Menotti del Picchia (1892-1988), Plínio Salgado (1895-1988), Guilherme de Almeida (1890-1969) e Cassiano Ricardo (1895-1974).
Este movimento fazia contraposição ao movimento antropofágico capitaneado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Ambos são fruto direto da Semana de 1922.
Posteriormente, o grupo “Verde Amarelo” seria objeto de um racha. Um setor capitaneado por Plínio Salgado passou a defender o integralismo e a aplicação do regime italiano fascista no Brasil. Cassiano Ricardo se opôs ao integralismo, vendo-o como um movimento que abandona a perspectiva nacional para endossar ideologia estrangeira. Por considerações parecidas, o escritor também se opunha ao comunismo. Em contraposição ao comunismo e ao integralismo, nasce o movimento “Bandeira”, sendo portanto, descabidas algumas críticas superficiais que buscam desmerecer Martim Cererê por uma suposta filiação ao nazi-fascismo.
Tanto é assim que nas primeiras edições do livro (antes do advento do integralismo) a obra era iniciada com um poema de Plínio Salgado, que foi posteriormente excluído das edições dos anos 1930.
Outro erro da crítica foi o de promover análises do livro se baseando em uma ou outra versão, desconsiderando as variações das diversas edições do livro – que refletiam a própria evolução do pensamento político de Cassiano Ricardo.
Vemos que o espírito bandeirante e sua importância na constituição do Brasil irá ganhar maior importância nas edições posteriores a 1932, após a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Igualmente, nas edições tardias, é dado maior relevo ao imigrante italiano, como um quarto elemento da “raça cósmica” brasileira, constituída pelo desbravador português (“caçador de relâmpagos”), o índio e o negro.
As alterações das diversas edições de Martim Cererê vão assim refletindo as mudanças políticas e seus impactos na consciência do escritor.
O livro não deve ser lido como uma somatória de pequenos poemas, mas como um único poema épico acerca da história do Brasil. Uma epopeia na qual o Brasil não foi descoberto “por acaso”, mas que é achado por navegadores com a consciência de cumprir um destino.
Nosso país é retratado como uma nação na sua primeira infância:
“E como todo creador que quer fazer a criatura à sua imagem
Levou a criança travêssa
P’ra sua mãe-preta criar.
Depois botou-lhe barrete
Muito vermelho á cabeça
E começou a gritar:
Como fica bonito, elle assim !
Todo pintado de carvão
com o seu gôrro carmesim.”
(…)
“Então eu penso em mil cousas bonitas.
Penso no meu paiz onde tudo é creança.
Onde a terra é creança que brinca
Com borboletas á margem dos rios.
Onde os rios também são creanças
Brincando de carro com a roda da lua
Numa paisagem ainda torta e desmanchada
Toda manchada de esperança
Toda borrada de ilhas em debuxo
Com borrões de lápis verde num caderno de creança”
No ano do bicentenário da independência nacional, do centenário da Semana de 22 que lançou as bases do modernismo, inclusive no campo historiográfico quando advieram os livros de história do Brasil de Gylberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e Caio Prado Júnior, nossa torcida é que uma nova onda nacionalista encante e mobilize os milhões de compatriotas em torno de vôos mais altos, tornando realidade todas as potencialidades do país. Como já foi dito, no guarda chuva do nacionalismo existe lugar para todos os brasileiros.

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