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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

Filmes bons… filmes ruins…

Discutindo o gosto no cinema

Na arte, costuma se dizer, gosto não se discute… nos discursos da crítica, contudo e acima de tudo, discute-se o gosto. Dessa maneira, na arte cinematográfica, o que seria um filme ruim? Em princípio, isso dependeria do gosto… o gosto, entretanto, depende do quê? Em verdade, o gosto não é uma entidade metafísica, pairando na consciência humana, da qual emanaria nossas vontades; tampouco, o gosto se revela algo vindo do espírito, coisa particular, própria de cada indivíduo, independentemente de quaisquer determinações sociais, portanto, políticas.

Não se pretende, em seguida, revolver assunto tão espinhoso quanto o gosto… para participar dessa discussão, todavia, começando por “gostar” com sentido de “saborear”, vale a pena indagar quem gosta de comidas exóticas, por exemplo, a comida japonesa. Antes de tudo, seria a comida japonesa, com seus tradicionais peixes crus, comida exótica? No Brasil, atualmente, isto é, nos 2020, a cozinha japonesa talvez já tenha se popularizado, a ponto dessa culinária ganhar, inclusive, especificidade, com características bastante distintas da tradicional, feita no Japão; nos 1990, entretanto, muitos estranharam comer salmão, atum e peixe branco sem cozinhar ou grelhar. Para gostar, portanto, torna-se necessário conhecer e, a partir do discernimento, aprender a apreciar; do sabor da comida para a beleza humana, trata-se do mesmo procedimento.

Na contemporaneidade, contempla-se a beleza com critérios plurais; se antes, em comerciais de roupas íntimas ou de banho, expressava-se somente a beleza dita clássica, com formas longilíneas, ditadas por corpos magros e com pele predominantemente branca, no presente, expressam-se corpos variados, buscando a inclusão de todos, inclusive, deficientes físicos, tais quais a modelo italiana Chiara Bondi, a quem falta a perna esquerda abaixo do joelho.

A atriz Sônia Braga, modelo indiscutível de beleza, já foi, em tempos idos, considerada uma mulher, se não feia, ao menos esquisita. Poucos se lembram, mas na telenovela “Fogo sobre terra”, de Janete Clair, que foi ao ar em 1974, na Rede Globo, um dos primeiros trabalhos de Sônia Braga na televisão, ela viveu o papel de moça provinciana, professora de uma cidade do interior do então estado do Mato Grosso, cujas características eram ser acanhada e feiosa; apenas no ano seguinte, em 1975, ela se impôs, mediante modelos brasileiros de beleza, como uma das mulheres mais bonitas do mundo, ao viver a protagonista na telenovela “Gabriela”, inspirada no romance “Gabriela, cravo e canela” de Jorge Amado, adaptada por Walter Goerge Durst para a mesma emissora de televisão.

Ora, falando de modelos e atrizes, aproximamo-nos do cinema; nesse tópico, como distinguir os filmes bons dos ruins? Há vários critérios para tanto… vamos nos ocupar de dois filmes, isto é, “A caçada do futuro”, 1982, de Brian Trenchard-Smith, e “No umbral da China”, 1957, Samuel Fuller; os critérios se resumem à consciência política e à semiótica, enfocando seja a trama seja a expressão plástica. O primeiro filme é australiano; na história, num futuro próximo, o país se encontra dominado pelo fascismo, com forte repressão policial, justiça persecutória e infestado por campos de concentração para prisioneiros políticos, que variam de guerrilheiros armados a inocentes, detidos por erros ou intolerância de juízes ou delegados. Em um desses campos, o diretor e alguns burgueses desocupados se divertem caçando seres humanos selecionados entre os presidiários, tratando-se da variação de um tema recorrente em filmes, em geral, de terror e ficção científica; na história, em meio a cenas de sexo, lutas, monstros mutantes, tiroteios, explosões e mortes violentas, um revolucionário, especializado em invadir meios de comunicação de massa, ajuda uma trabalhadora, presa injustamente, a sobreviver durante uma daquelas caçadas, nas quais se configura, explicitamente, a luta de classes, na correlação “opressão / burguesia e aparato repressor” versus “liberdade / revolucionários e trabalhadores”.

No final do filme, o casal protagonista, além de triunfar sobre os caçadores, provoca uma revolução armada no campo de concentração; contudo, longe de tudo se resolver em casamentos, risos e felicidade geral, ou seja, diferentemente do final burguês, característico da indústria cultural, a luta continua, pois, apesar da derrota dos diretores do campo, não se venceu a repressão política, mostrando que a verdadeira vitória contra a burguesia e seu aparato policial são, antes de tudo, a consciência política e o enfrentamento. Por fim, antes dos créditos, cita-se, vindo bem a calhar, “a revolução começa com os desajustados”, frase do escritor H. G. Wells, autor, entre tantas obras, de “Homem invisível”, a “Guerra dos mundos” e “A máquina do tempo”.

O filme de Fuller, contrariamente, não é revolucionário; declarando-se, logo na abertura, favorável ao imperialismo francês no Vietnam, o filme revela-se uma apologia do capitalismo, com as personagens combatendo, com armas nas mãos, o comunismo, apresentado enquanto ditaduras, levadas adiante por Josef Stalin, Mao Tse Tung e Ho Chi Minh. Na trama, um grupo de soldados, entre os quais há franceses, alemães, chineses e americanos, inclusive um oficial negro, vivido pelo cantor Nat King Cole, assumem a missão de explodir um depósito de armamentos do governo chinês, guiados, no território, por certa mulher, mestiça de chineses e europeus, quem goza de prestígio entre os soldados comunistas, especialmente das atenções do alto comando, por traficar bebidas e oferecer favores sexuais. Ela tem um filho, cujo pai é, justamente, o capitão do grupo; entretanto, embora ainda se amem, tornaram-se inimigos porque o oficial, insensatamente, abdicou da paternidade devido aos traços chineses, pouco acentuados na mãe, mas bastante marcantes na criança. Relutantemente, a protagonista aceita trabalhar com o ex-marido em troca da cidadania americana para o filho, quem, segundo ela, cresceria em liberdade nos Estados Unidos e não, na China; com tal roteiro, o filme não passa de propaganda anticomunista do imperialismo, bastante rasa e alienante, contudo, a cenografia é fantástica, conforme toda obra de Samuel Fuller, além de se discutir, com veemência, o racismo.

Em “No umbral da China”, Fuller antecipa discussões levadas adiante em “Cão Branco”, talvez, seu melhor filme; além do protagonista superar o racismo contra os chineses, assumindo e amando o filho no final da história, o grupo de soldados, vale lembrar, forma-se por várias nacionalidades e com personagem negra, principalmente, convencendo o capitão a mudar seus pontos de vistas retrógrados e desumanos, mostrando um negro estadunidense mais inteligente, gentil e altruísta do que o compatriota branco. Quanto à cenografia, conforme os demais filmes do mesmo diretor, o espectador assiste a verdadeiras coreografias nas cenas de ação, quando os combatentes parecem dançar; há oposições contundentes, por exemplo, na morte de vários soldados, com o diretor complexificando expectativas futuras e a dura realidade dos campos de batalha. Soma-se a isso, a bela canção tema, entoada pelo próprio Nat King Cole, com a letra bastante poética e música melodiosa, contrapondo-se às imagens chocantes das cidades em ruínas e às mortes a sangue-frio; em termos formais, o filme se impõe, revelando-se, nesse tópico, a crise da discussão sobre o gosto.

Diante dos contrastes de Fuller, questiono-me, afinal, se eu gostei de “No umbral da China”. Gostei bastante; cheguei, inclusive, a me emocionar em várias passagens, apesar da ideologia, quase idiota, pró-imperialista e anticomunista.

Toda obra de arte tem, pelo menos, dois aspectos: (1) o ideológico, fruto dos diálogos com a política da época, relevando-se, assim, a arte enquanto superestrutura, ou seja, como reflexo das relações econômicas – no caso do filme de Fuller, verificam-se propagandas do sistema capitalista, financiadas pela indústria cultural –; (2) o semiótico, mas nos referimos, nesse tópico, apenas à semiótica da expressão, responsável pelo filme enquanto texto segundo determinada linguagem, no caso, a linguagem cinematográfica, e não, a semiótica do conteúdo, em que os aspectos ideológicos, necessariamente, se manifestam. O gosto, portanto, não se pauta somente por um critério, pois todo texto, e não apenas as obras de arte, constituem-se, semioticamente, por vários aspectos; embora detestável em sua apologia do imperialismo, em termos formais, “No umbral da China” é fantástico; contrariamente, “A caçada do futuro”, mesmo deixando a desejar em termos de atuação, cenografia, trilha sonora, apresenta análises políticas bem mais interessantes, próximas da realidade histórica, inclusive, no respeitante às formas de luta.

Para concluir, em regra, cineastas excessivamente ocupados com aspectos formais tendem a se aproximar da direita, ora enfaticamente, feito Leni Riefenstahl e Alfred Hitchcock, ora menos, feito Stanley Kubrick; afastando-se dos vieses principais da indústria cultural, boa parte do cinema progressista se refugia nos considerados filmes B, tais quais filmes underground, de terror ou ficção científica. Em vista disso, ideologia e expressão artística raramente se combinam com perfeição, como nos cinemas de Elio Petri, Ettore Scola, Liliana Cavani, Sergio Leone, Jean-Luc Godard, Carlos Saura, Cacá Diegues, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Satyajit Ray ou Akira Kurosawa.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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