Quando meu filho tinha por volta de 7 anos, ele conheceu o universo dos “jogos de computador”. Eu, que vivi o apogeu do fliperama, nunca consegui ser influenciado por estes jogos – estava velho demais para ser contaminado – mas meu filho por alguns anos se dedicou aos jogos de guerra em “primeira pessoa”, onde era possível incorporar um soldado que enfrentava os inimigos em campos de batalha. Eu não gostava de jogar, mas adorava assisti-lo jogando e não me furtava de fazer alguns comentários. O mais comum – e que virou piada interna – era reclamar das matanças que seu personagem protagonizava. Eu lhe dizia: “Olha, você matou vários soldados inimigos!! Você acha que eles não têm família? Acha que eles não têm mulher e filhos? Acha que eles não têm uma casa para voltar quando você desliga o computador?”. Ele me explicava que eles não eram pessoas de verdade, e eram apenas as dificuldades que o jogo colocava para chegar até o “chefão” e vencer o jogo.
Fiquei feliz ao saber que, anos mais tarde, a minha piada sobre os “capangas” (que continha uma crítica à desumanização) um dia apareceu em uma comédia dos irmãos Zucker. Na verdade, estes jogos expõem, de forma dissimulada, uma face bem cruel da nossa sociedade – mas absolutamente verdadeira. Existem aqueles que merecem a condição de protagonistas da vida e da história, enquanto para outros esta condição não é oferecida; eles apenas merecem a condição subalterna, condenados a ser figurantes. Estes últimos são desumanizados, não contam, suas mortes não precisam ser lamentadas e são apenas o suporte para que os protagonistas possam brilhar.

Quando vejo os comentaristas da imprensa corporativa contextualizando o massacre das mulheres e crianças de Gaza, colocando a culpa das mortes nos próprios palestinos, dizendo que as mortes não aconteceriam se eles se rendessem ou parassem de usar suas mulheres e filhos como “escudos humanos” (uma mentira repetida mil vezes…), é inevitável trazer à memória Golda Meir. Foi ela, antiga primeira-ministra de Israel, que popularizou a frase genocida: “jamais perdoaremos os palestinos por terem obrigado nossos filhos a matarem os seus”, em conversa com Anuar Sadat, presidente do Egito. Como Israel é uma colônia ocidental, criada por invasores europeus e encravada em terra árabe na última e mais mortífera de todas as experiências colonialistas, percebi que a sociedade europeia continua a se considerar protagonista do planeta, e a periferia (em especial os palestinos, os negros africanos, os habitantes da Indochina e os “cucarachas” do Brasil) são como os capangas do jogo de computador do meu filho, cujo sofrimento e morte não contam porque ocorrem nos corpos dos figurantes no grande tabuleiro do planeta. Para eles nosso mundo continua dividido entre aqueles cujas vidas e mortes contam e os “outros”, para quem a existência não faz diferença alguma na grande contabilidade do capitalismo.
Mesmo após termos eliminado boa parte do colonialismo em África, Ásia e Oceania, a mentalidade ocidental ainda é guiada pela ética dos colonizadores europeus que dizimavam populações nativas inteiras, dando gargalhadas com a desorientação de aborígenes que jamais haviam visto uma arma de fogo. Somos como os franceses na Argélia, os belgas no Congo, os alemães na Namíbia. Somos insensíveis às lágrimas e gritos das mães palestinas, mas questionamos a resistência palestina chamando-a de “brutal”. Não aceitamos que os figurantes assumam o controle do seu destino, usem de sua própria língua, plantem e colham de sua própria terra e conquistem sua tão sonhada autonomia.
A fala emocionada dos jornalistas também me lembra os clipes carregados de emoção que mostram soldados americanos voltando do front da Ásia central ou oriente médio, fazendo surpresa para suas mães, companheiras e filhos. Depois de destruir as famílias de líbios, afegãos, sírios, palestinos, vietnamitas, coreanos e qualquer um que ouse enfrentar o Império, eles voltam felizes e emocionados para abraçar os seus, todos lindos, limpos e loiros. As mortes que causaram nos “outros” são irrelevantes diante da felicidade do reencontro, mas foram importantes para que seu heroísmo fosse exaltado. Essa é a face mais cruel do imperialismo, e por isso deve ser combatido se desejamos um mundo com equidade e justiça para todos os povos