Hoje, dia 25, faz 200 anos da primeira Constituição brasileira. Em 25 de março de 1824, menos de dois anos depois da Proclamação da Independência, D. Pedro I outorgou a Carta Magna, a mais longeva da história do País, durando até 1891.
Por ocasião da data, embora não trate apenas da Carta de 1824, o jornal Estado de S. Paulo publicou nesse sábado (23) um artigo chamado Constituições do Brasil: do golpe de 200 anos, passando pela fascista de Vargas até a cidadã de 1988, assinado por Heitor Mazzoco.
No que diz respeito à Constituição de 1824, o artigo traz algumas questões comuns levantadas por uma parte dos historiadores de que a Constituição teria sido fruto de uma ditadura imposta por D. Pedro: “Em dois séculos, País teve sete Cartas Magnas; destas, quatro democráticas (1891, 1934, 1946 e 1988) e três autocráticas (1824, 1937 e 1967)”, o artigo apresenta, portanto, a Carta de 1824 como “autocrática”, colocando-a no mesmo saco da Constituição ditadura do Estado Novo e da ditadura militar.
O problema de analisar a história apenas sob o aspecto meramente formal e superficial acaba gerando erros políticos graves.
Se é um fato que a Constituição de 1824 foi outorgada por D. Pedro, embora a situação também não seja assim tão exata, não é verdadeira a análise de que ele impôs uma ditadura no País, ao menos não ao estilo do Estado Novo ou da ditadura militar.
A primeira constatação que deve ser feita é que a Constituição de 1824 foi feita em meio a um período revolucionário, enquanto a luta pela independência ainda se dava em partes do país.
O principal argumento que faz com que acusem D. Pedro de ter implementado uma ditadura é a dissolução da Assembleia Constituinte, que se reuniu em 1823. Esse acontecimento não pode ser analisado sem levar em consideração que o novo regime ainda era instável. Foi o próprio D. Pedro que convocou a Constituinte. É inegável que ele era a figura em torno da qual se centralizava as forças revolucionárias, tanto por sua popularidade, quanto por sua habilidade em manobras com as diferentes forças políticas que participavam da Independência.
Não é correto interpretar o ocorrido 200 anos atrás com os olhos de hoje. É preciso entender que D. Pedro era um monarca. No entanto, ele era um monarca constitucional e liberal, algo que para a época era progressista. Sem essas coordenadas, é impossível fazer uma análise séria do problema.
D. Pedro convoca a constituinte e jura submeter-se à Constituição. Se D. Pedro fosse um ditador, ele seria um absolutista, não precisaria convocar Assembleia, nem jurar nenhuma Constituição, nem mesmo outorgar uma Constituição. Ele de fato teria poder para isso, já que era o Imperador e havia liderado a luta pela Independência.
Portanto, chamar o regime de D. Pedro de “autocrático” é um erro e até mesmo um anacronismo.
Diz o artigo do Estadão: “A primeira Assembleia Constituinte formada no Brasil ocorreu em maio de 1823 e seria responsável pela edição do texto constitucional. No entanto, ao perceber o movimento liberalista, Dom Pedro dissolveu a assembleia ao determinar invasão do plenário. Houve resistência e deputados foram presos e exilados. Eram 272 artigos previstos propostos por deputados que haviam sido eleitos. Oficialmente, depois da intervenção de Dom Pedro, aquela primeira Carta Magna teve 179 artigos.”
Os motivos que levaram à dissolução da Assembleia não é esse, mesmo porque a Constituição outorgada por D. Pedro era liberal. O problema central, que muitos historiadores sérios apontam, é o de que a Assembleia não conseguia chegar num acordo. A instabilidade do regime da nação recém criada se expressava dentro da Assembleia. Foram cinco meses de reuniões até que a situação ficou insustentável. A decisão de D. Pedro, como verdadeiro árbitro entre as classes, pode ser discutida, mas não é correto afirmar que sua ação foi a de um ditador implacável.
Logo que dissolve a Assembleia, D. Pedro monta um Conselho de Estado para discutir um projeto de Constituição em pouco tempo. Ou seja, sua preocupação era justamente garantir que uma Constituição fosse aprovada, pois sabia da importância disso para a estabilidade do novo regime.
A nova Constituição é feita baseada nas discussões apresentadas pela Assembleia Constituinte, o que mostra que não é precisa a opinião de que a Assembleia era mais liberal que D. Pedro.
Mais ainda, assim que o Conselho de Estado termina o projeto uma cópia da nova Constituição foi enviada para todas as câmaras municipais. D. Pedro esperava que a Carta servisse como um projeto para uma nova Assembleia Constituinte que aprovasse o projeto. No entanto, as câmaras municipais sugeriram que se adotasse o projeto como a Constituição brasileira. As câmaras acabaram substituindo a função da Assembleia Constituinte.
Essa sequência de fatos mostra por que é errado tratar a história de maneira superficial e sem levar em conta a situação política concreta. O próprio desenvolvimento da situação levou à aprovação da Constituição sem a Assembleia, embora esse não fosse o desejo inicial de D. Pedro.
Citando o historiador Eduardo Lima, o artigo afirma que “A Constituição de 1824 tem separação de Poderes, porém, o aspecto liberal tomou uma facada por causa do Poder Moderador que colocava Dom Pedro acima da lei. O texto constitucional amplia alguns direitos civis, mas deixa o monarca com muitos poderes.”
Embora admita que a Constituição amplia direitos civis, outro erro despreza o caráter liberal da Carta de 1824. Ela foi considerada uma das mais avançadas da época. Há um acordo sobre o caráter liberal da Constituição até mesmo entre historiadores que criticam D. Pedro ou que consideram esse liberalismo uma mera manobra política do Imperador.
A criação do Poder Moderador não serve como argumento para refutar o caráter liberal da Carta de 1824. Esse Poder foi inspirado na obra do liberal francês Benjamin Constant, que foi o principal teórico de uma monarquia constitucional.
Logicamente, há um caráter moderado nesse liberalismo, mas como dissemos, esse liberalismo deve ser colocado no cenário da época, em que imperava no mundo a reação absolutista, liderada pelo Congresso de Viena.
Sobre o regime escravista, que não é levantado pelo artigo, ele foi mantido, por pressão dos latifundiários que naturalmente eram uma das classes dirigentes da Independência. No entanto, os direitos garantidos na Constituição seriam importantes para o processo de abolição, finalizado décadas depois.
O que impressiona é que, 200 anos depois, um jornal capitalista, que apoia a verdadeira ditadura da burguesia imperialista no Brasil e no mundo, venha detratar a Constituição fundadora da nação brasileira. E é justamente pelo caráter progressista e liberal dessa constituição, fruto do processo revolucionário da Independência, que a burguesia de hoje a ataca.