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Juca Simonard

Editor da revista Na Zona do Agrião e redator do Dossiê Causa Operária

Coluna

O Rei, o Anjo e o Príncipe

Pelé, Garrincha e Neymar, os guerreiros do futebol-arte

Juca Simonard

Faz um ano que estamos sem o Rei do Futebol. Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, nos deixou no dia 29 de dezembro de 2023, emocionando o mundo inteiro. O maior atleta do século XX e melhor jogador de todos os tempos foi homenageado no mundo inteiro, confirmando seu título de “Rei”. Aliás, Pelé é o único Rei que ainda poderia existir e o título lhe vai muito bem.

Apesar de relembrar o passado, quando reis eram personalidades importantes do dia-a-dia, seria injusto se referir a uma pessoa como Pelé por outro título. Afinal, o Rei seria a autoridade maior de um determinado regime. Quando se diz que Pelé é o Rei do Futebol, afirmamos que, acima dele, não há ninguém. 

O escritor Nelson Rodrigues, quando cunhou o termo, na década de 1950, se referia ao caráter nobre do futebol magistral jogado pelo então menino Pelé. Mas, aproveitando sua analogia, podemos ir mais longe.

O Rei

A Idade Média, época em que reis eram comuns, é um período histórico ainda um pouco obscuro para a maioria da população. Porém, principalmente a partir de sua fase final, é um momento rico em mudanças, em grandes transformações e revoluções. Refiro-me a um período de progresso, em que as estruturas feudais foram sendo substituídas pelas estruturas modernas do capitalismo, revolucionando totalmente a sociedade mundial.

Nessa época, muitos reis cumpriram missões importantes para o progresso da humanidade. Finalmente, se fortaleceram com apoio da então revolucionária burguesia contra os senhores feudais que dividiram as nações. Foram, assim, fundamentais para o surgimento das nações modernas.

Temos, por exemplo, o caso de Dom Afonso Henriques, que liderou um combate extraordinário contra os espanhóis para fundar o Reino de Portugal. O então jovem príncipe libertou seu povo e consolidou a unidade portuguesa. Ainda entre os ibéricos, podemos também citar Dom João I, o Mestre de Avis, que liderou um movimento revolucionário para garantir a independência de Portugal, num processo que levaria ao desenvolvimento gigantesco das forças do progresso através das Grandes Navegações nas décadas subsequentes.

Mas, quando falamos em Grandes Navegações, não podemos também deixar de citar os príncipes. Filho do Mestre de Avis, o Infante Dom Henrique foi fundamental para expandir o comércio mundial nessa época, permitindo assim uma internacionalização das relações mundiais e um extraordinário progresso das forças humanas.

Na sociedade de classes, determinadas forças sociais se expressam em determinadas figuras: reis, príncipes, parlamentares, dirigentes partidários e sindicais, e assim segue. Quando falamos de Afonso Henriques, de João I e do Infante, falamos de figuras que representaram um importante progresso da humanidade, de forças sociais que defendiam o fim da velha sociedade.

Quando falamos de Pelé, falamos da mesma coisa. Edson Arantes do Nascimento foi um desses reis revolucionários. Levou o progresso à sua área: o futebol, o esporte mais popular do mundo. Destruiu o velho e burocrático futebol criado na Europa para consolidar um novo tipo: o futebol-arte, dos pobres e mestiços brasileiros, que inventaram o futebol bonito, com dribles e gingas. Um futebol à moda brasileira: jogado ao ritmo do samba, que agradou o mundo inteiro e revolucionou o futebol para sempre.

Existe o futebol antes de Pelé e o futebol depois dele. Hoje, aquele jogo estático já não existe mais. No mundo inteiro, buscou-se imitar o futebol brasileiro, um futebol dinâmico e bonito, uma obra de arte que se assemelha à dança e, com sua forte expressão, a uma pintura romântica.

É claro: Pelé é parte de um processo de desenvolvimento dessas forças sociais que aboliram o antigo esporte bretão. Antes do Rei, podemos citar jogadores como Friedenreich, Leônidas da Silva, Heleno de Freitas, Zizinho, Nilton Santos, entre outros, que fizeram parte dessa luta que revolucionou o futebol mundial a partir do Brasil. Mas Pelé é a consolidação desse período.

Tal como um Rei, Pelé foi reverenciado pelos seus grandes feitos. Assim como Dom Afonso Henriques, Pelé liderou uma luta nacional, uma luta que consolidou a identidade brasileira como o País do Futebol. O Brasil, simplesmente, não pode ser dissociado do futebol, que circula entre o povo brasileiro, como um peixe dentro d’água; que faz os sentimentos dos torcedores balançarem; que faz o coração do Brasil pulsar. No País, alguém que alegue não torcer para nenhum time de futebol é uma espécie de alienígena, um ser estranho, um motivo de gozação.

Mas Pelé também é um Dom João I, um revolucionário que abalou as antigas estruturas. É, ainda, um Infante Dom Henrique e um Napoleão Bonaparte. O primeiro, pioneiro das Grandes Navegações, foi responsável por iniciar o processo que levaria à internacionalização das relações de comércio internacionalmente. O segundo, imperador da Revolução Francesa, o responsável por abalar, mundialmente, os últimos resquícios do atraso feudal. Pelé, no que lhe concerne, acabou de vez com o futebol antigo.

O Anjo

Mas, sendo Pelé um rei, este também teve de ser apoiado pelas forças divinas. Isso, aliás, é uma lei entre as monarquias. Os reis e os deuses, quer dizer, as forças sobrenaturais, estão ligados desde o surgimento dos primeiros reinos e impérios, no Egito antigo, na Babilônia etc. Pelé também foi apoiado por uma força divina: Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha, que, não por acaso, jogou no Botafogo, o time mais supersticioso do mundo.

O Anjo Garrincha formou com Pelé a maior dupla do futebol mundial na história. Juntos, nunca perderam sequer uma partida. Enquanto Pelé goleava os adversários, estava lá Garrincha, causando um estardalhaço nas linhas defensivas do time rival e distribuindo passes. Não se trata de uma aleatoriedade que Pelé e Garrincha sejam da mesma geração, a época de ouro do futebol brasileiro, a época de consolidação do futebol-arte, o verdadeiro futebol moderno.

Aliás, o Anjo e o Rei foram apoiados por outras forças do progresso na conquista das duas primeiras Copas do Mundo da Seleção Brasileira. Os príncipes e as classes revolucionárias também estavam presentes, como em qualquer revolução. Citemos, por exemplo, o caso de Didi, o Príncipe Etíope, e Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol, o Voltaire brasileiro. Assim como Voltaire, que revolucionou a França, Nilton Santos revolucionou a lateral, tornando-a uma posição de defesa e ataque simultaneamente.

Com ajuda desses, o reino e os céus, Pelé e Garrincha revolucionaram para sempre o futebol mundial. Sobre Sua Majestade Pelé, já falamos, mas por que Garrincha seria obra do Divino? 

A resposta para essa pergunta é simples. Garrincha é uma figura sobrenatural, nem mesmo era um jogador de futebol. Mané não levava a sério seus adversários e as competições: jogava futebol por pura diversão, seguindo o espírito feliz das peladas brasileiras. 

Garrincha nem mesmo era um jogador profissional, mas uma espécie de Charlie Chaplin do Brasil: um ator que, deixando os zagueiros adversários de bunda no chão, fazia o público dos estádios se divertir, soltando-lhes risos intermináveis. Era um agitador de plateia e sua falta de foco e seu jeito brincalhão não o deixaram fora do Panteão dos maiores jogadores de todos os tempos. Por isso, transformou-se em “Alegria do Povo”.

Mas o caráter divino de Mané Garrincha vai além, pois nem mesmo deveria ter sido jogador de futebol. Garrincha não era qualquer tipo de Anjo, mas o “Anjo das Pernas Tortas”. Como afirmou Nilton Santos, fisicamente, Garrincha “driblou todos os prognósticos”. Afinal, como um jogador de futebol, que trabalha com as pernas, poderia ter seu instrumento de trabalho estragado — e, ainda assim, ser um dos melhores da história da profissão?

Mas, sobre Garrincha, deixemos que Nilton Santos, a Enciclopédia, que conviveu com Garrincha no Botafogo e na Seleção Brasileira, fale sobre o Anjo:

“Teoricamente, o Mané joga o futebol mais errado que alguém já jogou no mundo. Seu eu tivesse que ensinar a um jovem extrema, diria: ‘você está vendo aquele ali? Preste muita atenção ao seu jogo e faça tudo ao contrário’ […] Mané pode fazer tudo errado porque ele é um fenômeno da natureza, mas nunca poderá ser imitado. Fisicamente, ele driblou todos os prognósticos, inclusive o do médico que o olhou, ainda bebê, e disse que aquele garoto nunca conseguiria caminhar. Teoricamente, ele é um aleijado, não há ortopedista que não diga isso.”

“Esse garoto que mal podia se equilibrar entrou nas peladas de bola de meia e aprendeu a fazer as coisas de maneira diferente. Veja bem. Um bom ponta, ao receber a bola, tem duas maneiras de agir. Se é homem de muito pique e boa habilidade, normalmente joga a bola para a frente e ganha do marcador na velocidade, retoma a bola e tenta o passe ou o tiro. Geralmente os que fazem isso são bons chutadores e têm pouco futebol. O extrema mais difícil de marcar é aquele que traz a bola perto do pé e, ao invés de fugir, parte para cima de seu marcador. Ele vem fazendo ziguezague em alta velocidade e pega você parado, passando por sua perna de apoio. Alguns, como Julinho [Botelho], vêm ao seu encontro fazendo tabela de um pé para outro, com rapidez incrível. Já o Mané não é como ninguém. Ele recebe a bola, corre até a entrada da área e, ao invés de aproveitar a velocidade e o corre-corre da defesa, ele para. É o único atacante do mundo que prefere os defensores em fila. Além disso, dribla de contra-ataque. Mané faz como os boxeadores que esperam, às vezes até oferecendo a cara. Quando o adversário desfere o murro, ele esquiva e coloca o seu soco. Você compreende que esse sistema é pessoal e não tem nada a ver com o resto do futebol? Qualquer jogada de conjunto termina no Mané. E ele recomeça tudo.”

“No ano em que Mané aparece, tentava-se disciplinar definitivamente o futebol brasileiro. O diretor do clube, o técnico e o público achavam que o sistema de Flávio [Costa, treinador da Seleção de 1950], era preciso continuar procurando. Sobretudo, era necessário nos libertarmos do jogador improvisado, da firula desnecessária, do malabarismo. Gentil Cardoso mandou escrever, no vestiário, frases que faziam parte da campanha contra o individualismo. Em letras garrafais via-se coisas como: ‘O PASSE DEVE SER DE PRIMEIRA’, ‘VOCÊ NÃO ESTÁ SÓ NA EQUIPE’, ‘QUEM DESLOCA, RECEBE’. […] Mané aguentou, de 53 a 54, todas as críticas e caçoadas que você possa imaginar. Só continuava no time do porque o Botafogo não tinha mesmo jogadores e pelo menos Garrincha, de vez em quando, driblava uma porção de sujeitos, provocava pânico e fazia gol. O pior para ele é que, pouco depois dele aparecer, o clube resolveu trazer de volta Zezé Moreira para treinador.”

“Zezé mandou buscar uma cadeira do bar e colocou no campo. Danilo tinha que dar um passe ao Garrincha. A cadeira era o adversário. Mané, sem mesmo parar a bola, devia chutar, dando um passe pelas costas da defesa adversária, a fim que Paulinho, na corrida, entrasse para marcar o gol. Tudo combinado. Zezé apitou e ficou olhando. Danilo, de safadeza, deu o passe muito curto. Quando Mané sentiu que não dava, puxou a bola e deu um ‘come’ na cadeira […] Zezé disse que ele era burro, jogou o chapéu no chão e saiu bufando.”

“Garrincha para bancar inglês, não servia”, completou Nilton.

Mané Garrincha era essa figura espetacular. Em 1962, no ano do bicampeonato mundial da Seleção Brasileira, Pelé se lesionou e não conseguiu jogar toda a Copa do Mundo. Quem garantiu o título da Canarinho? Manoel Francisco dos Santos, na melhor atuação individual da história das Copas do Mundo. Fez o diabo e garantiu o segundo título consecutivo dos brasileiros.

O Príncipe

Pelé e Garrincha são, portanto, as maiores expressões do futebol-arte brasileiro, que se consolidou e fundou um império que tomou conta do mundo. Um império dos povos oprimidos, afinal, foi fundado pelo Brasil, um país pobre, de mestiços, que não, além do futebol, não domina as outras áreas da sociedade. Um país oprimido, mantido no atraso pelo imperialismo, pelos Estados Unidos e pela Europa. Mas as forças retrógradas da Europa não puderam segurar a revolução do Rei e do Anjo. E, desde então, surgiram inúmeros outras figuras nobres e místicas no futebol brasileiro. Tivemos Ronaldo, o Fenômeno, Ronaldinho, o Bruxo, Adriano, o Imperador, Jairzinho, o Furacão, entre outros. Sem falar daqueles que não ganharam apelidos dessa natureza, mas são parte dessa evolução, como Romário, Zico, Rivelino, Gerson, Rivaldo etc.

Esses são os guerreiros dos povos oprimidos, aqueles que defenderam, diante das tentativas das forças retrógradas, o futebol-arte. Agora, porém, vivemos em tempos sombrios, em que a burocracia europeia, apoiada pelo capital financeiro, volta a se sobrepor ao futebol do progresso. Mas é impossível retroceder: as criações de Pelé e Garrincha entraram para a eternidade.

Os sul-americanos, liderados pelos brasileiros, são a fortaleza mais forte da resistência, mas são também apoiados pelos africanos e alguns europeus que tentam sair do modelo “coletivo”, contra o “individualismo”, que tenta se implementar no mundo.

O grande paladino atualmente dessa luta é um príncipe: Neymar, indubitavelmente, o jogador mais habilidoso do século XXI. Jogador que mais sofre faltas no mundo, Neymar está em uma fase ruim, ferido pelas batalhas. Contra o futebol bonito, as forças retrógradas tentam destruir seu atual líder, com faltas agressivas. Citemos, por exemplo, a falta do colombiano Zúñiga no Príncipe, durante a Copa de 2014, que poderia tê-lo tirado do futebol para sempre. Por questões de centímetros, Neymar continuou jogando, mas chegam lesões atrás de outras.

Isso, porém, não é suficiente para tirá-lo de sua posição de liderança do futebol-arte. Neymar, neste ano, tornou-se o maior artilheiro da Seleção Brasileira em jogos oficiais. Um maestro, é o jogador que mais participou de gols por seleções entre os atletas que ainda atuam. Mesmo em má fase, retornando de lesão, Neymar é fundamental. Na Arábia Saudita, por exemplo, onde foi recebido pelos árabes como um nobre guerreiro, da forma que merece, participou de inúmeros gols. Apesar de só ter marcado uma vez, deu assistências e originou a maioria das jogadas que levaram a gols nas partidas em que participou.

O Rei, o Anjo e o Príncipe são os guerreiros do futebol-arte, os paladinos das forças do progresso contra as forças reacionárias. O futebol vive e os oprimidos, sob o comando dos brasileiros, o fará novamente evoluir. Mas a batalha é dura e envolve muitas frentes.

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