A esquerda pequeno-burguesa abandonou definitivamente o debate político. Aliás, abandonou qualquer debate e substituiu pela histeria do chamado “cancelamento”. Em geral, é a tentativa de calar aquele com o qual não se concorda.
É um método burguês e reacionário que a esquerda imita. A burguesia tem poder para cancelar alguém. Poder econômico e poder político. Já a esquerda apenas imita esse comportamento nas redes sociais, mas como não tem poder, a esquerda apenas late na internet. Esse método anti-científico e obscurantista foi introduzido pelo identitarismo cuja única preocupação é acusar o adversário.
Um incidente entre a Unidade Popular (UP) e outros grupos revela bem como é esse método. No chamado “dia da visibilidade trans”, o grupo fez uma postagem no Twitter: “Devemos, coletivamente, lutar para que as pessoas transgêneros e transexuais tenham uma vida digna e acesso aos meios de resolverem sua condição (de não se identificarem com o corpo no qual nasceram)”.
Esse tuíte foi o alvo dos críticos da UP. Para qualquer pessoa normal, não há nada de mais no texto. Como é comum nos partidos da esquerda pequeno-burguesa, onde falta muito conteúdo político e teórico, a colocação da UP é uma generalidade. A colocação é tão genérica que pode ser interpretada de muitas maneiras.
Mas os demais grupos de esquerda, infectados pelo vírus do identitarismo e motivados pela competição dentro do microcosmos da classe média esquerdista, atacaram a publicação da UP como se fosse um crime, um pecado que levará o grupo direto para o inferno. Interpretaram a postagem da maneira mais enviesada possível, conseguiram a proeza de transformar um comentário genérico, cuja finalidade era obviamente defender os transexuais, em um grande e perigoso insulto aos transexuais.
O PSTU fez dois artigos para dizer que estava “indignado” com a posição da UP, chamando-a da “transfóbica”:
o texto só confirma e reforça que a UP (encabeçada pelo PCR, Partido Comunista Revolucionário), apesar de suas tentativas falhas de ‘revisionismo’ sobre o tema, continua ecoando o pior da tradição stalinista sobre gênero e sexualidade.
Outro grupo que se apresenta como trotskista, o MRT, também publicou artigo chamando a UP de “transfóbica”:
A Unidade Popular, no dia 29, fez uma postagem no twitter chamando a ‘lutar’ para que as pessoas trans tenham ‘acesso aos meios de resolverem sua condição’, ou seja, de se curarem.
O MRT e o PSTU interpretaram a afirmação da UP do jeito que melhor convinha a eles para poder fazer campanha contra o grupo na internet. Há muitas maneiras de interpretar a colocação genérica da UP sobre o problema, a mais difícil é interpretar como uma defesa da “cura trans”. Mas na hora de fazer campanha eleitoral, vale tudo.
Não foram apenas os textos. Na publicação do Twitter choveram comentários “cancelando” a UP. Na mente dos canceladores, a UP havia automaticamente se transformado em “transfóbica”, ou sempre foi.
Ao melhor estilo do identitarismo, ideologia pró-imperialista, portanto obscurantista e anti-científica, interpretaram livremente o que disse a UP para poder xingar o grupo, sem debate, sem argumentação, nada. O que vale é o adjetivo vazio e a histeria.
O comportamento da UP diante da histeria também revela muito sobre a classe média de esquerda. A UP apagou a postagem e foi tentar se justificar: “Reconhecemos o mal entendido de generalizar, naquela postagem específica, todas as pessoas trans. Pelo erro, pedimos desculpas e, por isso, já excluímos a postagem no mesmo dia.”
A UP, ao invés de debater o problema, aceitou a histeria dos outros e preferiu o obscurantismo. Aceitou o cabresto que lhe impuseram, colocou o rabinho entre as pernas e se desculpou.
O interessante é que tanto o MRT quanto o PSTU acusam a posição da UP de ser stalinista. Mas no que diz respeito às críticas fundamentais contra o stalinismo, vemos pouco ou quase nada falarem da UP. É frequente os ataques da UP e de pessoas ligadas a ela contra o trotskismo e contra o marxismo em geral; sobre isso, que são questões fundamentais, não há debate.
O PCR (Partido Comunista Revolucionário), grupo que está por trás da UP, participou do movimento “Não vai ter Copa”, impulsionado pelo imperialismo contra o governo Dilma. Mas aqui, nem MRT, nem PSTU estão preocupados em criticar, já que ambos também participaram, sendo que o PSTU, mais do que isso, apoiou abertamente o golpe de Estado.
O recuo da UP mostra como a esquerda pequeno-burguesa preza mais pela chamada opinião pública do que por um debate científico. Esses grupo preferem agradar a panelinha de esquerdistas histéricos do que estabelecer um debate sério sobre determinadas questões. A UP tentou fazer demagogia com os transexuais e, como desagradou o restante dos identitários, percebeu que a demagogia não deu certo e adotou uma posição ainda mais demagógica para tentar limpar sua barra.
Um exemplo recente que ilustra bem a mentalidade da esquerda pequeno-burguesa são as mobilizações de 2013. Quando a direita sequestrou aquele movimento e começou a exigir que os partidos de esquerda abaixassem a bandeira, ainda não estava claro que se tratava da direita. Uma parte da esquerda chamou, então, aquilo de “clamor popular”, não só aceitando aquela imposição de caráter fascista, como passou a defender o “abaixa a bandeira” em nome de que seria um “pedido do povo”. Só o PCO se recusou a abaixar sua bandeira, porque tem personalidade política e, convicto da justeza de suas posições, não se dobra diante dos ataques dos adversários.
Um revolucionário não é aquele que tenta agradar todo mundo, mas é aquele que sustenta a sua posição até o fim. Logicamente, essa posição é científica, fruto de um debate, baseada num programa político claro.
O marxismo não é um dogma, mas um debate aprofundado de ideias. A histeria não é marxismo, é uma religião obscurantista. E é nela que cai toda a esquerda pequeno-burguesa identitária, nela inclusa o MRT, o PSTU e a UP.