José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

A Doutrina de Choque em franco andamento na Argentina

Por detrás da notória loucura de Milei, há uma crise inédita do capitalismo internacional

Neste momento de crise de hegemonia do imperialismo norte-americano no mundo, a América Latina é uma região especialmente visada. Dentre outras razões por seus recursos naturais: grande quantidade de terras raras, triângulo do lítio (Bolívia, Argentina, Chile), maiores reservas de petróleo do mundo (incluindo o pré-sal no Brasil, imensas reservas de ouro e cobre, os imensos recursos da Amazônia. Por exemplo, 30% da água doce do mundo está nessa região, o que explica muito da voracidade das multinacionais em relação ao subcontinente. O ano de 2023 foi o pior para o imperialismo como um todo, em muitas décadas, com significativas derrotas e crises em várias partes do planeta. Neste contexto, o império norte-americano precisa se fortalecer na região que considera seu “pátio dos fundos”, a América Latina. 

          É nesse pano de fundo que a situação da Argentina deve ser compreendida. O governo de Javier Milei provocou, no primeiro dia, uma desvalorização cambial de 115%, que está destruindo o mercado consumidor interno. Apenas com esta medida, o governo prejudicou o poder aquisitivo de cerca de 70% da população argentina, e sem nenhuma espécie de compensação. A previsão é que a inflação chegue a algo em torno de 100% entre dezembro e fevereiro, sem nenhuma compensação salarial, o que deve elevar o nível de pobreza para padrões desconhecidos no país (que já tem mais de 40% de pobreza).  

          O DNU (Decreto de Necessidade de Urgência), o super decreto de Milei, que contém 366 medidas – na prática uma profunda mudança constitucional feita por canetada – representa também a transformação da Argentina em um depósito de recursos naturais, colocado à disposição do sistema financeiro e dos grandes capitalistas mundiais. Não há outra definição: o governo Milei, com o apoio do empresariado nacional, está oferecendo todos os recursos naturais e estatais da Argentina, para a pilhagem internacional. 

         O DNU, que entrou em vigor em 21.12.2023, modifica ou revoga mais de 350 normas na lei argentina, foi elaborado, em cerca de um ano e meio, por um grupo de profissionais ligados aos grandes grupos econômicos que atuam na Argentina. Em cada cláusula do Decreto, está comtemplado os interesses dos grandes grupos econômicos que atuam na Argentina. São cláusulas com nome e sobrenome de interesses de grandes grupos empresariais, especialmente os estrangeiros. 

          Em entrevista recente a um programa de televisão, já como presidente eleito, Milei anunciou orgulhoso que Elon Musk ligou para ele, altamente interessado nas reservas de lítio que a Argentina dispõe. Milei expressou na ocasião, com alegria juvenil, sua satisfação com o interesse do dono da Tesla, e do governo dos EUA nas reservas do mineral estratégico. Argentina, Bolívia e Chile compõem o Triângulo do Lítio, com 60% das reservas mundiais deste mineral, segundo o Serviço Geológico dos EUA (USGS). O lítio, que tem várias aplicações, é fundamental, por exemplo, para a indústria de automóveis elétricos, carro chefe da Tesla.

         Alguns representantes do capital norte-americano, ou mesmo do governo dos EUA, costumam se referir aos recursos existentes nos países latino-americanos, como se lhes pertencessem. Em 2020, o próprio Elon Musk, se referindo à Bolívia, escreveu em sua conta no Twitter: “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”. A frase foi uma resposta às denúncias de que os EUA estiveram por trás do golpe na Bolívia em 2019, inclusive com interesse de Musk, em função das reservas de lítio, metal fundamental para as baterias que movimentam os veículos da Tesla. 

         O DNU de Milei tem uma cláusula que, entre as 366, não está tendo muito destaque: através dela o presidente pode revogar leis existentes e criar outras, sem passar pelo Congresso Nacional. Ou seja, na prática essa cláusula poderes absolutistas para o presidente. O DNU é tão destrutivo, que a oposição nem está conseguindo discutir esse aspecto, que torna o poder de presidente da república, absoluto. Se o Decreto, que está em vigência em boa parte, passar no Congresso, o presidente poderá governar sem o legislativo. 

         Em outra medida o Decreto possibilita que estrangeiros poderão adquirir terras na Argentina sem restrições. Até então, o máximo permitido a um estrangeiro era comprar 15% da área de um município, de uma província ou do país. A cláusula não está ali por acaso, a Argentina é conhecida por suas zonas de terras extremamente férteis, principalmente na região pampeana, área que abrange cidades como Buenos Aires, Santa Fé, Rosário e Baía Blanca.

          Como se o anterior fora pouco, em 28 de dezembro o governo enviou um projeto de reforma ao Congresso que, na prática dará poderes de imperador ao presidente. Entre os 664 artigos previstos está a permissão para privatizar 41 empresas públicas – entre elas YPF, Banco da Nação e Aerolíneas Argentinas -, eliminar a votação nas primárias presidenciais e introduzir um amplo imposto de 15% sobre a maioria das exportações. Entre as reformas propostas está a da concessão de um poder legislativo à Presidência até 31 de dezembro de 2025, que significará na prática, a anulação dos poderes do Congresso. Com o detalhe que o mecanismo poderá ser prorrogado por mais dois anos, ou seja, dará poderes absolutos à Milei, até o fim do seu mandato. 

      A Lei Ônibus, como está sendo chamada, acaba com o mecanismo de correção das aposentadorias, cujos valores já estão achatados pela inflação alta, sem mecanismos ágeis de correção, como ocorreu nos últimos anos.  O artigo 194 do projeto propõe uma espécie de estado de sítio, ao sugerir até 3,5 de cadeia, para quem impedir ou atrapalhar o trânsito de pessoas ou veículos. Além disso, as organizações sociais devem informar ao governo sempre que forem realizar manifestações ou reuniões. O projeto libera o comércio internacional de petróleo e derivados, ou seja, o abastecimento interno deixa de ser prioridade, e não haverá mais regulação na área de petróleo e outras fontes de energia. 

           Um outro dispositivo do projeto dá poderes ao governo para gerar dívida pública sem a permissão do Congresso e não haveria mais os limites sobre obrigações soberanas emitidas no exterior. O governo Milei, que pretende dolarizar a economia, não dispõe do básico, que são justamente os dólares. 

          O conjunto das medidas não irá resolver os problemas econômicos argentinos e, por isso, irá “fracassar”, no sentido da resolução dos problemas nacionais. Afinal, a fórmula que está sendo aplicada na Argentina (tirando os aspectos folclóricos), já foi testada várias vezes no país: liquidação do mercado consumidor interno, destruição da indústria, privatizações e entrega das riquezas naturais, não são novidades no país, exceto pelo extremismo das medidas. Mas o objetivo do programa de Milei não é “dar certo” do ponto de vista dos interesses nacionais. O objetivo é transformar o país numa base para investimentos especulativos, principalmente para os grandes grupos financeiros. 

         Milei é partidário da Escola Austríaca de economia, que, dentre muitas inconsistências, não foi testada em parte nenhuma do mundo. A liberação dos limites para compra de terras na Argentina obviamente não visa reduzir a fome no país, mas abrir oportunidades de negócios para capitais especulativos, que estão com vida que pediram a deus, com o atual governo argentino. 

          Milei começou o governo, no primeiro dia útil, provocando uma gigantesca desvalorização cambial, que fez os preços explodirem, sem haver uma compensação para os salários, o que tornou o plano um caso único na história argentina. Posteriormente veio com um DNU, completamente inconstitucional, que significará a maior transferência de riqueza dos trabalhadores para a burguesia, já registrada na história. Por último, enviou um projeto de lei que, se não for rejeitado na íntegra, significará a destruição total da economia Argentina e um retrocesso de 200 anos em termos de direitos políticos e sociais. Javier Milei, um tipo que diz conversar com cachorros e ter se encontrado com Deus, está fazendo tudo isso sozinho? Evidentemente que, por detrás de toda essa loucura, está a velha direita argentina, entreguista e reacionária, além do próprio imperialismo norte-americano. 

         O movimento popular mostra claramente que não está preparado para um jogo tão pesado, imposto de forma tão truculenta. A reação popular e dos sindicatos, até o momento, está muito aquém do que seria necessário para barrar um ataque dessa envergadura. Ademais, a destruição da economia não pode ocorrer sem aumento da repressão. O governo Milei, sabendo disso, criou, nos seus primeiros dias um “protocolo anti piquete”, que, nada mais é, que um método de proibição de qualquer manifestação pública de reação aos ataques à soberania e os salários.  

        Por detrás da notória loucura de Milei, há uma crise inédita do capitalismo internacional. Para abrir um novo ciclo de exploração e oportunidade de negócios eles precisam destruir a segunda economia mais importante da América Latina. Parece evidente que, em face da crise mundial, eles optaram por dobrar a aposta do estrago neoliberal, na oportunidade que se abriu no país vizinho. Os trabalhadores de toda a região devem ficar de olho vivo porque se o programa de Milei conseguir ser implantado na Argentina, servirá de modelo para todo o subcontinente. 

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