Recentemente, assisti a um filme russo chamado A Questão Russa (Russkiy vopros, 1947), dirigido por Mikhail Romm para a Mosfilm. Realizado dois anos após o final da II Guerra Mundial dentro da política stalinista para a cultura soviética naqueles tempos, qualquer um que assista a este filme pode pensar que se trata de propaganda.
E não estará errado. Há algo de propaganda nesse filme. Mas, ao mesmo tempo, ele tem contradições que a distância de mais de 70 anos que nos separam de seu lançamento acentua.
O enredo, ambientado em Nova York, conta a história do jornalista Harry Smith ( Vsevolod Aksyonov), enviado a Moscou por seus patrões, donos de uma cadeia de grandes jornais, interessados em fomentar a guerra fria com um material “novo” contra a URSS. A missão de Smith é escrever um livro que mostre aos americanos que a União Soviética é ruim, uma ditadura sanguinária, onde as pessoas vivem muito mal.
Para tanto, os patrões pagam a Smith uma quantia razoável de dinheiro, que permite a ele se casar, dar à esposa uma casa e viver o sonho de classe média. Porém, uma crise de consciência impede o jornalista de ir em frente e ele acaba escrevendo um livro que desagrada totalmente os donos dos jornais.
Como consequência, ele perde cada um dos símbolos de status recém-alcançado, incluindo a esposa. Porém, acaba então se tornando um ativista político dentro dos Estados Unidos. Adaptação da peça teatral do escritor soviético Konstantin Simonov.
O enredo já seria interessante se tivesse sido feito em Hollywood, mas torna-se ainda mais se considerarmos que ele foi todo gravado na União Soviética, com atores soviéticos e em língua russa. Essa representação de americanos por soviéticos já vale o filme.
No entanto, há mais. O enredo desenrola-se mais por diálogos do que pela ação em si, com a crise de consciência do jornalista em primeiro plano. Também é uma representação do poder das empresas de comunicação dos Estados Unidos para criar inimigos em nome de sua “democracia”. Exatamente como percebemos hoje com a questão da guerra na Ucrânia.
Outro ponto a ressaltar é a representação dos americanos na visão russa. Ao contrário do que podemos pensar, o filme não os retrata de maneira estereotipada. Ao contrário, os personagens apresentam várias facetas e ambiguidades, oscilando entre as questões morais apresentadas, sem que o filme caia na fácil polarização entre mocinhos e bandidos.
O objetivo foi mostrar que a União Soviética era um país moderno, com indústrias, trabalho e pessoas comuns que fazem coisas cotidianas em uma sociedade dinâmica. Não o pesadelo comunista que era e é pintado na mídia hegemônica dos Estados Unidos até hoje. Obviamente, isso não impede que as contradições fiquem esquecidas.
Como ferramenta de propaganda, ele não faz a defesa do socialismo como se poderia imaginar (uma contradição evidente). Porém, focado na audiência russa daquele momento, opõe o modo de vida soviético às práticas capitalistas que submetem seus cidadãos a chantagens para conseguir uma vida com algum conforto. A questão de classes é evidente.
De concreto, podemos dizer que o filme – após tantos anos – ainda parece muito atual porque os materiais históricos daquele momento de 1947 ainda são os mesmos que vivenciamos atualmente. O que nos une a este passado é a questão imperialista americana e como ela ainda usa dos mesmos artifícios para se manter.
O filme também revela como o cineasta Mikhail Romm, que foi professor de Andrei Tarkovisky e contemporâneo de Sergei Eisenstein, conseguiu trabalhar com questões complexas, mesmo sob o regime stalinista.
Vale assistir. Questão Russa está disponível no CPC-UMES.