Nas eleições deste ano, o crescimento indiscutível do bolsonarismo como força política fez nascer, nos setores mais confusos da esquerda nacional, a ideia de que o regime estaria sendo infiltrado por “bichos papões”. Isto é, por monstros que nada têm a ver com a política nacional, que vieram do além e cujos valores morais estariam infinitamente abaixo dos figurões tradicionais.
Seriam “bichos papões” homens como Roberto Jefferson, presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que, já cumprindo sentença de prisão domiciliar, xingou uma ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e atirou contra agentes da Polícia Federal quando esses vieram lhe transferir para um presídio. Pessoas como a deputada federal Carla Zambelli (PL), que, ao se ver em meio a populares hostis, sacou uma arma e ameaçou um indivíduo de prisão. Pessoas como o candidato ao governo de São Paulo pelo Republicanos, Tarcísio Freitas, que está sendo acusado de forjar um atentado e até mesmo de ter assassinado uma pessoa para omitir detalhes dessa suposta farsa.
Todos eles são de fato figuras violentas. E mais que isso: são pessoas execráveis, covardes e psicopatas. Um lixo humano que não deveria ter a simpatia de ninguém. O problema, no entanto, é que a campanha atual que esses setores da esquerda nacional fazem contra os “bichos papões” peca fundamentalmente em duas questões: 1) dão a entender, ou mesmo dizem explicitamente, que os políticos burgueses antepassados não eram figuras igualmente repugnantes; 2) focam a denúncia em aspectos unicamente morais e negligenciam por completo a luta de classes. Ambos os pecados, conforme veremos, se complementam.
Tome-se o exemplo da candidatura de Tarcísio de Freitas. Hoje, qualquer um que caminhe entre os apoiadores de Fernando Haddad (PT) ouvirá: “é preciso votar em Haddad contra Tarcísio, pois esse será o pior governador da história de São Paulo. Ele não é civilizado, é violento, é apoiado por Bolsonaro”. Não há dúvida que o governo de Tarcísio Freitas seria uma desgraça para o povo de São Paulo. Mas o que teria de especial nessa desgraça? O povo paulista vive na desgraça há décadas, vítima de governos verdadeiramente monstruosos.
São Paulo está há mais de vinte anos sob gestão do PSDB, o partido mais capacho dos bancos no País. O PSDB simplesmente largou o estado às moscas, destinando o orçamento inteiro aos bancos e transformando uma das maiores e mais ricas cidades do mundo, que é a capital paulista, em um local que parece que foi bombardeado. E não é só a miséria, em comparação à riqueza do estado, que salta aos olhos. A repressão do PSDB foi uma coisa bárbara. O último mandato de Geraldo Alckmin frente ao governo do Estado de São Paulo, com Alexandre de Moraes (também conhecido como “Xandão, o caçador de fascistas”) como secretário de segurança pública, viu números recordes de chacinas policiais. A Polícia Militar de São Paulo sempre foi extremamente violenta, matando de 500 a mil pessoas por ano. É uma estatística, não tem nada a ver com o bolsonarismo em si. O aparato de repressão é uma máquina de extermínio.
E antes mesmo do PSDB? Quem não lembra do maior massacre da história do sistema prisional, que foi a chacina no complexo do Carandiru, quando 111 detentos foram assassinados, sendo que 84 deles sequer haviam sido julgados? O governador dessa época não era Tarcísio Freitas, nem Bolsonaro, mas sim Luiz Antônio Fleury Filho, do MDB, partido de Simone Tebet e Michel Temer.
O que agora justificaria um pavor de Tarcísio Freitas? Absolutamente nada. A não ser uma operação política, consciente ou não, de absolvição dos políticos da direita tradicional. Isto é, uma política de indulgência ou mesmo de beatificação dos criminosos que torturaram a população de São Pulo ao longo das últimas décadas. “Tarcísio é o maior monstro da face da Terra” corresponde, neste momento, a uma política que tem como sentido “José Serra, Geraldo Alckmin, João Doria, Bruno Covas e companhia são grandes homens públicos”.
E é justamente por isso que a campanha contra os “bichos papões” são fortemente moralistas. Afinal, se a esquerda, em vez de criticar Tarcísio de Freitas por ser um elemento do golpe de Estado, defender as privatizações e toda a política neoliberal, simplesmente criticá-lo por arrotar à mesa, os direitistas inimigos do povo, que hoje se travestem de “civilizados”, passarão impunes.
Os bolsonaristas não são seres do além que vieram para rebaixar o nível moral da política brasileira. Eles são, na verdade, a expressão mais sincera da decadência e do deslocamento à direita da burguesia, que diante da crise política cada vez maior, precisa recorrer cada vez mais à truculência para represar o desmoronamento completo do regime.
O regime como um todo deve ser combatido pela esquerda: Tarcísio de Freitas, Fernando Henrique Cardoso, Bolsonaro, João Doria, Michel Temer — todos eles. Do contrário, não salvará a “civilização”, mas morrerá soterrada agarrada a um regime prestes a despencar.