Por quê estou vendo anúncios no DCO?

Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Língua no banco dos réus

O português fascista: língua sob fogo cruzado

Texto sem revisão vira produto "cult" na bacia da diversidade

Usar a norma culta do idioma é coisa de gente fascista. Esse é o pensamento do youtuber Ian Neves. Conquanto apoie sua afirmação numa amostra muito reduzida, o que, em si, é uma fragilidade do raciocínio, o rapaz tem o mérito de dizer diretamente e em muito poucas palavras algo que vem sendo propagado com mais sutileza nos órgãos de disseminação de informação da burguesia.

É, no entanto, na condição de militante de esquerda da UP que Ian Neves explica ao seu público que “o fascismo se manifesta na língua” e, para comprovar a asserção, elenca nomes que vão de Plínio Salgado, que era poeta e integralista, a uma certa Cíntia Chagas, moça que, embora nem sempre saiba distinguir sujeito de predicado, se apresenta nas redes sociais como “professora de português” e, de fato, é bolsonarista. A pequena lista de fascistas do idioma inclui Janio Quadros, que, além de ter sido presidente da República, foi autor de uma gramática do português (Curso Prático da Língua Portuguesa e sua Literatura, 6 volumes), Fernando Collor de Melo (ex-presidente, cuja performance linguística é mostrada em um curto vídeo resgatado pelo youtuber) e Michel Temer, o golpista que, no discurso de posse, ao tomar o lugar de Dilma Rousseff, para o gáudio da imprensa burguesa, proferiu a frase: “Quando menos fosse, sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica”, tirando do sarcófago uma mesóclise de gosto duvidoso, que, no entanto, parece ser o menor dos problemas do sujeito.

Não que algum desses nomes mereça algum tipo de defesa, mas o raciocínio de Neves peca pela generalização e pela falácia formal, já que sua conclusão não decorre necessariamente das premissas (non sequitur, em latim). Caso conhecer e usar a norma culta do idioma fizesse de alguém um “fascista”, teríamos de incluir nesse ignominioso rol todos os escritores da nossa tradição, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Castro Alves, José de Alencar, Cecília Meireles, Clarice Lispector e tantos outros que seria ocioso enumerar. É preciso que Ian Neves tome conhecimento de que nas categorias profissionais de professores de português e revisores de texto, por exemplo, há muita gente alinhada ao campo da esquerda. De todo modo, ele não é culpado da confusão que está ajudando a fomentar.

Há algumas décadas, os linguistas trouxeram ao grande público a discussão sobre “erro gramatical”, defendendo a tese de que erro mesmo não existe, pois o que assim é chamado não passa de um “desvio da norma culta”. Num país extenso e economicamente desigual como o Brasil, os linguistas descobriram inúmeras variantes regionais e diastráticas (de estrato social), o que levou muitos deles a estudar, já no âmbito da sociolinguística, o fenômeno do “preconceito linguístico” contra usuários de “formas linguísticas estigmatizadas”. A partir de então, o termo “erro” passou a ser associado a esse tipo de preconceito. A intenção de valorizar a expressão e a expressividade linguística das camadas populares é naturalmente positiva, embora sempre se possa lembrar que os tais desvios da norma e a consequente criação de variantes são fruto da falta de acesso à educação formal.

Estamos, portanto, diante de um impasse: devemos universalizar a educação, de modo que todos tenham acesso à norma de prestígio, aquela na qual são escritos os textos científicos, jurídicos, jornalísticos e a maioria dos literários ou, por outro lado, devemo-nos insurgir contra o uso dessa “norma culta”, que seria, ao fim e ao cabo, a forma de expressão das classes dominantes? Claro está que, se fosse disseminado a todos os estratos, esse conhecimento perderia sua marcação de classe. Se considerada esta última hipótese, o aprendizado dos recursos da língua é basicamente uma ferramenta de disseminação de ideias. Não nos parece que estimular o estudo da língua em sua norma culta seja, em si, um projeto fascista.

Não é o que pensam os adeptos da chamada “descolonização da língua”, última moda nas universidades, que também elegem como alvo de críticas a norma culta, agora vista como um repositório de preconceitos herdados do colonizador português. Segundo o linguista Gabriel Ávila Othero, a língua descrita pelas gramáticas normativas é inatingível:  é “mais idealista que realista, mais lusitana que brasileira, mais antiga do que contemporânea e mais prestigiada do que deveria”.  E prossegue: “Numa época em que a discriminação de raça, cor, religião ou gênero não é publicamente aceitável, o último bastião da discriminação social velada vai continuar a ser o uso da linguagem de uma pessoa”. Ao que tudo indica, seguindo essa linha de raciocínio, se a norma culta deixar de existir (ou “perder o prestigio”), o preconceito acabará.

Enquanto a esquerda vai ruminando essas ideias, a burguesia, que não perde tempo, apodera-se das lutas dos negros, das mulheres e dos homossexuais/ transexuais, investindo pesadamente na política identitária como forma de cooptar os movimentos e de promover negócios nos nichos cada vez mais segmentados. Os estudos de sociolinguística também oferecem ao sistema a possibilidade de, sob a rubrica da “diversidade”, criar segmentos de negócios.

A editora Companhia das Letras, por exemplo, trouxe a público recentemente novas edições dos diários de Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo, Casa de Alvenaria), que tinham sido publicados em 1961 pela Livraria Francisco Alves por obra do jornalista Audálio Dantas. As novas edições, sob a orientação identitária, buscaram preservar ao máximo os “desvios da norma culta” da autora, que, no entanto, tinha estudado um pouco e, à primeira vista, deixa transparecer seu desejo de escrever segundo a norma (uso frequente da ênclise, uso do pronome “lhe” etc.). Os livros da maior editora do país estão nas livrarias à disposição de uma classe média que consome “diversidade”.

A Folha de São Paulo, por exemplo, ao mesmo tempo que comercializa seu Manual da Redação, com as regras do “português fascista”, abre espaço para colunistas de expressão “alternativa”, como um certo Anderson França, apresentado como “escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, […] autor de ‘Rio em Shamas’ (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares”. O “roteirista”, falando em primeira pessoa, inclui em seu texto “erros de concordância” que claramente são forçados para mimetizar o que seria a linguagem da zona norte do Rio de Janeiro, isto é, de gente pobre.

Um texto coalhado de “desvios” gramaticais publicado pela Folha de São Paulo ou pela Companhia das Letras não é genuíno, não representa a voz dos estratos mais explorados da sociedade. Na verdade, esses veículos se apropriam desse discurso e o oferecem, como se fosse um acepipe, a um nicho de consumo. Conseguiram a proeza de transformar gralhas de concordância em discurso libertário e ainda faturam em cima disso. Assim, na luta contra o português fascista, marcham juntos Ian Neves, a Folha de São Paulo, a Companhia das Letras e os linguistas identitário-decolonialistas.

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.