No dia 24 de novembro, o Brasil e a Argentina assinaram um memorando relativo ao comércio de energia elétrica e gás entre os dois países. O Memorando de Intercâmbio de Energia foi criado em 2019. Segundo comunicado do Ministério de Minas e Energia, ele servirá para reduzir o custo do intercâmbio em questão e, além disso, aumentará a segurança energética de ambas as nações, já que estabelece uma saída a uma eventual crise de abastecimento.
Entretanto, o ponto mais significativo do memorando em questão, que tem vigência até 31 de dezembro de 2025, e principal alvo de análise do presente artigo, se dá no artigo 9° do documento:
“Para toda transação comercial de intercâmbio de energia elétrica utilizando a alternativa “a” [Operação Comercial de Intercâmbio de Energia Elétrica], gerada pela aplicação do presente Memorando, será aplicado o Sistema Bilateral de Pagamentos de Moedas Locais, implementado por meio do “Convênio do Sistema de Pagamentos em Moeda Local entre a República Argentina e a República Federativa do Brasil”, assinado em 8 de setembro de 2008.”
Em outras palavras, com a instituição do acordo em questão, a Argentina e o Brasil definiram que não utilizarão o dólar no que diz respeito ao comércio energético entre os dois países. Mas sim, suas respectivas moedas locais – o peso argentino e o real.
Além disso, a expectativa é que, com a chegada do governo Lula, esse tipo de relação bilateral se torne cada vez mais o padrão. Em 2008, em seu segundo mandato, Lula acordou, em conjunto com o governo argentino da época, em acabar com a obrigatoriedade de que o comércio entre as duas nações deva ser pago em dólar. Logo, deve aproveitar a brecha criada pelo memorando citado para intensificar ainda mais esse tipo de integração econômica.
Trata-se de uma medida positiva e benéfica para os países envolvidos. Finalmente, não é possível confiar no dólar americano em nenhum sentido. Em primeiro lugar, se determinado país faz algo que desagrada os Estados Unidos, como é o caso da Rússia e da Venezuela, o primeiro pode lhe impor sanções que proíbam a realização de comércio em dólar. Consequentemente, se a nação depende do dólar, ela não poderá mais fazer comércio com ninguém, paralisando a sua atividade econômica.
Por outro lado, já que os banqueiros imperialistas dos EUA controlam o preço do dólar por meio do mercado financeiro, frente a uma situação também de desagrado em relação à política adotada pelo governo, podem encarecê-lo ou reduzi-lo conforme os seus próprios interesses. Algo que, inclusive, aconteceu recentemente com o Brasil após declarações de Lula contrárias ao chamado “mercado” – um apelido para o setor da burguesia mais ligado ao capital financeiro.
Fica claro que os passos em direção ao abandono do dólar são algo extremamente positivo, principalmente agora que o imperialismo, em especial os Estados Unidos, entra em uma das maiores crises de sua história.
Não é à toa que vários países já fizeram o mesmo. Os membros da Nova Rota da Seda, da Organização de Cooperação de Xangai, da União Econômica Euroasiática, ou seja, principalmente os países da Ásia em conjunto com a Rússia, estão seguindo essa tendência e fortalecendo as suas próprias moedas contra o monopólio financeiro do dólar. Algo que está sendo caracterizado pela imprensa desses países como a “desdolarização” da economia.
Ademais, atualmente, quase todo, senão todo o comércio entre a Rússia e a China é feito em rublo (a moeda russa) e em yuan (a chinesa). O mesmo ocorre com o Irã, a Índia, o Catar e a própria Arábia Saudita. Ao mesmo tempo, a Venezuela iniciou o processo de comércio em criptomoedas, criando o petro. Justamente porque as sanções impostas sobre ela pelos Estados Unidos lhe impediram de utilizar o dólar e, devido a essa dependência, não conseguia sequer comprar alimentos e remédios.
Ao lado do comércio bilateral em moedas nacionais, uma medida e um projeto típico dos governos nacionalistas é a criação de uma moeda regional comum. Muammar Kadafi, antigo líder da Líbia até a sua deposição e assassinato pelo imperialismo em 2011, por exemplo, propôs que a União Africana tivesse uma. Lula fez o mesmo em relação à América do Sul mais recentemente, durante as eleições presidenciais deste ano – a moeda seria chamada “sur”.
Ou seja, a tendência dos governos que estão em contradição com o imperialismo, dos governos mais nacionalistas, é abandonar o dólar. Querem ser mais independentes, algo impossível caso permaneçam vinculados comercialmente e monetariamente com o imperialismo.
Decerto que os Estados Unidos, principalmente agora, em momento de crise, não deixarão esse tipo de política passar impune. Por isso utilizam golpes de Estado, sanções e guerras para impor a sua política sobre os países oprimidos. O próprio Kadafi foi morto e a Líbia foi destruída, entre outros motivos, em decorrência do plano de independência monetária.
Por fim, cabe destacar que, em certa medida, esse tipo de política interessa até mesmo a setores poderosos e reacionários da burguesia nacional, mais uma contestação do caráter contraditório da sociedade capitalista.
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), durante um evento empresarial em julho deste ano, apoiou a intensificação do comércio bilateral sem o uso do dólar, mas sim, com moedas locais: “Apoiamos a ideia de realizar comércio em moedas locais e avisaremos isso ao governo brasileiro”, afirmou Josué Gomes da Silva, presidente da FIESP.
A FIESP, que foi uma das principais patrocinadoras do golpe de Estado, acabou por sofrer com o processo golpista, uma vez que foi dominado por completo não pelos industriais brasileiros, mas sim, pelos financistas estrangeiros. Algo que foi comprovado pelo fato de que o golpe elevou a taxa de desindustrialização do País de maneira acelerada.
Ou seja, o apoio que o memorando recebe dos industriais da FIESP expressa o seu incômodo em relação à economia brasileira. Quadro que os obriga, necessariamente, a tomar uma posição de sobrevivência por meio da recusa do dólar americano e da valorização da moeda nacional em um ponto específico do comércio exterior.