Ser “influenciador digital” e, de quebra, virar “palestrante” pode ser um meio de vida. A economia capitalista absorve qualquer coisa que se apresente como mercadoria, até mesmo discursos esquerdistas, que, embalados em versão soft, são destinados ao mundo corporativo ou a quem quer que pague por eles.
Vários jovens já descobriram esse nicho e, aparentemente, agradam à esquerda pequeno-burguesa, que adora fazer política em casa, atrás da tela do computador, e que acha que basta “ser do bem” para estar do lado certo da luta. “Ser do bem”, por óbvio, pressupõe aderir às políticas identitárias, afinal temos de combater o racismo estrutural, a lgbtqiap+fobia estrutural e o machismo estrutural. O adjetivo “estrutural” tem o condão de estender a toda a sociedade a responsabilidade por essas mazelas, anulando o papel da luta de classes nos conflitos.
Não por outra razão, os palestrantes identitários, alcunhados “especialistas” nos diversos temas, são bem-vindos nas grandes empresas, que os contratam para falar aos seus funcionários. É esse o caso de um certo Guilherme Terreri, que, sob o nome de Rita von Hunty, é apresentado na Wikipédia como professor, ator, youtuber, comediante e drag queen.
É na pele da drag queen Rita von Hunty que disputa seu lugar no mercado de palestras. Seu nome integra o casting da DMT Palestras, que assim se apresenta aos potenciais clientes: “Hoje, mais do que oferecer palestrantes, a DMT Palestras se preocupa em recomendar profissionais que realmente agreguem valor aos seus eventos e estejam alinhados com a sua necessidade”.
Rita von Hunty põe à disposição da clientela o seu Curso Revolucionário e palestras sobre vários temas, como Masculinidade tóxica, Estereótipos, O amor como construção social e até Consciência de classe. Segundo o site, “tanto o Curso Revolucionário de Rita von Hunty quanto as palestras formatadas para o meio corporativo surgiram do desejo de tornar o conhecimento mais acessível e de se criar um espaço acolhedor e seguro para o desenvolvimento do pensamento crítico”.
Ao que tudo indica, para Rita von Hunty, o meio corporativo é o tal ambiente acolhedor e seguro para o desenvolvimento do pensamento crítico. Antes de informar que Rita “está disponível para mediações de debates, mestre de cerimônias e intervenções em eventos corporativos”, a página dela no site de palestras apresenta-se como “um espaço para se ensinar, aprender, pensar, questionar e formar uma rede de pessoas que desejam transformar o mundo através da transformação da própria realidade”. Sua transformação em drag queen seria, então, o seu ato político.
À Folha de S. Paulo, que, no fim do ano de 2019, filmou a sua transformação de Guilherme em Rita, declarou que “a esquerda precisa se reinventar” e que se alegrava de ver o crescimento da bancada do PSOL. O mundo corporativo, que contrata as palestras revolucionárias de Rita von Hunty, deve estar adorando a nova esquerda reinventada, a mesma que apoiou o golpe contra Dilma Rousseff.
Não bastasse a conversa identitária, que já sabemos onde desemboca, Rita von Hunty resolveu usar seu “poder de influência” para demover seus seguidores da intenção de votar no Lula na próxima eleição. Segundo a personagem em questão, Lula não estaria suficientemente à esquerda, pois, em seu discurso de lançamento da candidatura, não prometeu, com todas as letras, revogar a reforma trabalhista. Dito isso, a drag queen conclamou o voto “radical” no PCB, na UP, na Vera do PSTU ou no Glauber Braga, do PSOL.
Criticar o discurso do Lula e a escolha do seu vice está na ordem do dia. O problema é, com base nessas críticas, pedir o voto em legendas que estão fora da disputa majoritária, hoje polarizada entre Lula e Bolsonaro. Os apelos da drag queen, que se apresenta como “esquerdista”, caso sejam ouvidos, vão emagrecer a candidatura da esquerda, representada por Lula, favorecendo a direita bolsonarista.
Rita von Hunty deveria explicar se tem compromisso com a classe trabalhadora (e se está disposta a lutar ao seu lado) ou com os empresários, que comemoraram a reforma trabalhista e, a exemplo de Luiza Trajano, lamentaram que ela não tenha sido mais “radical”.
Somos levados a pensar que Rita von Hunty ou Guilherme Terreri não tenha intenção de atrapalhar os próprios negócios. Muito pelo contrário, fazer campanha contra o voto no Lula pode aumentar o valor do seu cachê nos espaços acolhedores do mundo corporativo.