No último sábado, dia 5, alguns manifestantes entraram na Igreja do Rosário, em Curitiba, como parte de um protesto na cidade contra o assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe e de Durval Teófilo Filho, morto brutalmente pelo próprio vizinho.
Está claro que os dois assassinatos são resultados da política que a burguesia golpistas vem há anos impulsionando no País. Se por um lado crimes como esses infelizmente são comuns, por outro, coisas assim se tornaram mais frequentes graças à política fascista incentivada pela burguesia contra o povo. Certamente, se há um real culpado na história é o regime golpista e a máquina de propaganda e de repressão estatal que leva na prática a violência contra o povo negro e pobre.
Essa apreciação política sobre esses dois casos brutais de assassinatos ocorridos no Rio de Janeiro passou distante, no entanto, da avaliação dos identitários. Há um esforço, inclusive com a participação da imprensa golpista, para transformar os protestos em uma abstrata luta contra um racismo igualmente abstrato. Uma luta contra moinhos de vento.
O incentivo dado ao identitarismo por parte de setores da burguesia é o culpado por essa confusão. Os identitários ignoram as causas concretas da violência contra o negro e ignoram que o principal inimigo dos negros no Brasil é a polícia, que assassina diariamente centenas de pessoas.
Os atos que ocorreram em protesto não foram direcionados contra a polícia, contra o Estado, contra o sistema judiciário ou contra os capitalistas ─ que são a concretização e a personificação da opressão contra o negro. Tivessem essa finalidade, poderiam incendiar o País em uma verdadeira jornada pela libertação do povo negro, como houve nos EUA após o assassinato de George Floyd. Mas lá, essas jornadas foram sabotadas pelos “derrubadores de estátuas” (em uma infiltração da burguesia para desviar o foco do movimento). Aqui, estão sendo sabotadas pelos lacradores.
Foi essa confusão ideológica e política o que acabou impulsionando a ação desastrosa e desastrada, mais desastrada do que desastrosa, do grupo que invadiu a Igreja em Curitiba. Qual é exatamente a culpa daquela igreja no assassinato que aconteceu no Rio de Janeiro? Pior ainda, qual a culpa das pessoas comuns que estavam ali professando sua fé na missa?
Para os manifestantes, a Igreja representa um “racismo simbólico”, ou seja, o problema não é concreto, é uma abstração. Sobre o acontecimento, o vereador do PT, Renato Freitas, declarou à Folha de S. Paulo:
Aí gerou uma discussão, um debate, porque é a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito. Uma igreja construída pelos pretos e para os pretos, em 1737, durante a escravidão, porque os pretos não podiam entrar em outras igrejas, reservadas aos brancos (…) Essa igreja tem um poder simbólico, uma representatividade, é imbuída de um sentido histórico
Pronto, desviou-se completamente a luta, que deveria ser contra a opressão concreta do negro, causada pelos aparatos de repressão policial e judicial do Estado burguês ─ e por seus apêndices, como grupos de extrema-direita, o que deveria ser combatido com a reivindicação do armamento popular ─, para uma pretensa luta contra um símbolo que, em última instância, é algo que não existe.
O problema mais importante da ação em específico diz respeito à concepção que a esquerda deve ter sobre todas as religiões. O marxismo nunca defendeu a opressão da religiosidade do povo. A população, por mais que se deva criticar o caráter conservador das igrejas, deve ter liberdade de culto. Não faz sentido um movimento, que se pretende popular, atacar uma igreja e as pessoas que se sentem representadas ali.
A ação atua contra o esclarecimento e serve mais para confundir do que para explicar. Tanto é assim que a extrema-direita está usando o caso para atacar toda a esquerda, como se a esquerda – e no caso particular, o PT – fosse inimiga da liberdade religiosa.
Logicamente, não devemos permitir o ataque da extrema-direita contra os manifestantes, independentemente se concordamos com seu método. Mas é importante dizer que a ação foi um equívoco.
A extrema-direita é cínica e está usando o caso para perseguir os manifestantes e fazer campanha contra toda a esquerda. Além disso, quer se apresentar como sendo a grande defensora dos direitos democráticos e da liberdade religiosa, como se não fosse ela mesma a principal inimiga das religiões minoritárias de matriz africana, que sofrem cotidianamente a violência fascista.
Até mesmo nesse ponto a ação dos manifestantes é um grande perigo. Quando um grupo identificado com a esquerda aparece atacando uma igreja, isso pode resultar numa escalada de violência contra as religiões de matriz africana. E nessa disputa, a corda com certeza vai estourar do lado mais fraco como sempre. Não que a extrema-direita precise de pretextos para atacar os setores mais oprimidos, mas quando isso acontece essa esquerda identitária supostamente radical não reage, não chama ao enfrentamento físico com os elementos fascistas ─ muito pelo contrário, o máximo que faz é chamar o Estado repressor para este fingir que combate o fascismo. E o ciclo vicioso continua…
A confusão gerada pelo identitarismo é um enorme problema na esquerda. Desvia as pautas de luta pelas as reivindicações concretas dos movimentos e cria uma divisão social ao invés de procurar unificar todos os setores do povo para uma luta comum. Explicando melhor, a luta da esquerda não é contra os católicos ou os evangélicos em abstrato, é uma luta contra a burguesia e contra seus representantes no governo, na polícia, no judiciário e na Igreja.
Os identitários colocam, com suas ações irracionais e mesmo reacionárias, uma parte significativa da própria população oprimida contra os negros e a esquerda. Afinal, a maioria dos católicos, evangélicos e religiosos em geral é pobre, e negra também. É da classe trabalhadora. E vê a religião não como um instrumento de opressão, mas como uma válvula de escape para seus sofrimentos. Mas o identitarismo, como é uma política cujos métodos são agressivos e autoritários, ignora tudo isso e tenta calar e, contraditoriamente a seu discurso, oprimir outros setores.
A esquerda precisa ficar atenta a uma ideologia estranha às tradições do movimento operário e popular. O identitarismo é um cavalo de troia para criar uma confusão como a que ocorreu em Curitiba.