Apesar de todas as desgraças que vieram com o governo golpista e ilegítimo de Jair Bolsonaro e com a pandemia, algo que este período trouxe de positivo foi uma série de riquíssimos documentários do grande cineasta argentino radicado no Brasil, Carlos Pronzato.
O olhar preciso e o talento singular de Pronzato colocam sob holofotes, mais uma vez, a realidade da classe trabalhadora. No documentário intitulado “A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió”, Pronzato expõe, sem floreios, a realidade da população de Maceió que sofre com o dano ambiental causado pelos capitalistas da Braskem e a extração do sal-gema.
A catástrofe ambiental ocorrida em Maceió já dura três anos. Estima-se que 57 mil pessoas foram atingidas e tiveram que sair de suas casa.
Em pouco mais de 80 minutos, no documentário, vemos pessoas de carne e osso que contam a história sob o ponto de vista dos oprimidos se maquiagens ou medo de falar a verdade. Histórias que são escondidas pela imprensa burguesa e pelo capital.
Por isso, entrevistamos o diretor Carlos Pronzato e conversamos sobre diversos aspectos tratados em “A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió”. Também perguntamos sobre o próprio processo artístico usado por Pronzato para construção de mais essa obra-prima do cinema político latino-americano.
“Toda determinação da justiça em casos como este, depende da mobilização popular, que tem que lidar inclusive com obstáculos quase impossíveis de vencer, como é a diária propaganda em todas as plataformas midiáticas possíveis, através do seu departamento de propaganda, que estas empresas realizam para promover suas “belas ações em prol da sociedade”.
Dentre os principais pontos a serem destacados está o claro entendimento do diretor que a única maneira de derrotar não apenas a Braskem, mas os capitalistas e sua relação promíscua com o Estado burguês é a através da mobilização popular.
Revista do DCO: Pronzato, haverá justiça para as famílias atingidas ou justiça é algo impossível seja nesse caso ou em outro que envolver o grande capital?
Carlos Pronzato: Acredito que a morosidade da Justiça é similar na maior parte do planeta, especialmente quando se trata de resguardar os interesses do grande capital, e neste caso específico, as vítimas estão lidando com a maior empresa do ramo do país, principal ativo da Odebrecht, atual Novonor. Toda determinação da justiça em casos como este, depende da mobilização popular, que tem que lidar inclusive com obstáculos quase impossíveis de vencer, como é a diária propaganda em todas as plataformas midiáticas possíveis, através do seu departamento de propaganda, que estas empresas realizam para promover suas “belas ações em prol da sociedade”. Pelo que pude perceber, a depender da resistência dos grupos organizados maceioenses, essa guerra vai para longe e a Braskem não vai levar tão fácil neste embate entre Davi e Golias…
DCO: Neste documentário, ficou claro que os governos não apenas financiaram, mas deram total respaldo a Braskem. Como você observa o papel dos governos como promotores da destruição ambiental?
Pronzato: É uma constante em quase todos os exemplos do tipo em que possamos pensar a esse respeito. As PPPs (Parcerias Público Privadas) são um ótimo expediente para driblar os interesses da população, cujo voto, a cada dois anos nas eleições “democráticas” burguesas, é ignorado constante e impunemente por este tipo de ação (entre amigos) que envolve o conluio entre governos e multinacionais. Se não houver transformações estruturais nessa relação ambígua, onde as audiências públicas (quando há) decidem uma coisa para depois assistirem mudanças diametralmente opostas, inflando e desviando recursos públicos, este tipo de situações continuará indefinidamente.
DCO: Como você acha que vai ficar Maceió nos próximos anos após este crime cometido pela Braskem e pelo próprio estado?
Pronzato: O crime já leva três anos, tempo suficiente para enxergar que atitudes enérgicas dos governos não foram tomadas contra a empresa nem contra os órgãos públicos responsáveis pelas licenças ambientais e jurídicas. Portanto, a negligência das ações da empresa, também institucionalizada neste trágico episódio, além do tempo citado, leva mais de quatro décadas, como confirmado pelos cientistas que acompanham as rachaduras do solo, das casas e as subsidências posteriores (afundamento do solo) desde o início da autorização para minerar a sal-gema nos anos 70. Maceió inteira já está abalada por esta catástrofe ambiental e humanitária, a região de pânico está instalada devido à proximidade com o cenário minerado e pelas redes reais familiares e de convivência na cidade, que atingem praticamente a totalidade da população da capital.
DCO: O papel do MP e da Defensoria Pública foi muito criticado pelos atingidos. Como você avalia o papel destes órgãos? Não ficou a impressão de que tentaram costurar algo simplesmente para “mostrar serviço”, mesmo que fosse um acordo que serviu pouco aos atingidos?
Pronzato: O papel dos órgãos que você cita na sua pergunta foi, efetivamente, criticado pelo conjunto da população, muito além dos casos isolados e “resolvidos” de atingidos por esse tipo de mineração irresponsável e delitiva. No documentário fica claro, através dos testemunhos de lideranças comunitárias que acompanham de perto o desenrolar do caso, que quem fez acordo bilateral com a empresa, o fez por não ter alternativas perante a situação de desespero e a injusta “compensação financeira” para com suas vítimas. O papel dos Ministérios e Defensorias Públicas da União é o de defender a população de inescrupulosas agressões como esta, e o que salta a vista é que o acordo costurado entre o governo e a empresa não contemplou o peso total da população atingida através de todas as suas associações constituídas para agir na defesa das suas irreparáveis perdas muito além das econômicas, um acordo que deveria ter sido tripartite desde o início, incluindo também os atingidos e as suas organizações.
DCO: Uma curiosidade é que Maceió tem uma linha férrea que está sendo destruída, com um grande número de trabalhadores afetados. Em Salvador a mesma coisa ocorreu e foi tema de um de seus documentários recentes. Como você observa esses ataques contra a mobilidade urbana, como você avalia que isso impacta a população, especialmente a mais pobre?
Pronzato: Venho trabalhando sobre a mobilidade urbana faz tempo, desde o documentário A Revolta do Buzu, em Salvador, durante os protestos estudantis contra o aumento da tarifa em 2003, que desembocaram nas mobilizações de junho de 2013, quando também abracei a causa no documentário A partir de agora, as Jornadas de Junho. Em Maceió, o VLT foi interrompido numa região onde a mineração atingiu o solo do seu percurso. Fizemos o trajeto que agora precisa ser complementado com uma linha de ônibus o que causa imensos transtornos econômicos e de tempo gasto no trajeto aos trabalhadores. Em Salvador, no documentário Trem do Subúrbio, trilhos de resistência a situação é bem pior, já que a partir de uma propaganda enganosa do governo (e de uma empresa chinesa) o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) foi transformado, mantendo a sigla, em Veículo Leve de Transporte, iniciando a destruição dos trilhos de superfície para a instalação de um monotrilho em cima de pilastras de cimento. Portanto, quem lucra são as empresas montadas nos governos de turno, e quem sofre com as tarifas exorbitantes e também com a impossibilidade de utilização por questões de classe social dos serviços arrancados ao povo e privatizados, é a população mais pobre.
DCO: É impossível não enxergar, nesse caso de Maceió, semelhanças em relação ao que aconteceu em Mariana e Brumadinho. Você acha que outros crimes ambientais dessa magnitude devem ocorrer em breve?
Pronzato: De fato, a ideia inicial da realização do documentário foi construir uma trilogia com outros dois documentários realizados em 2019 e 2020, os quais são, respectivamente, Lama, o crime e Vale no Brasil, a tragédia de Brumadinho, e Amapá, quem vai pagar a conta? Há uma linha de continuidade, com esses episódios, também provocados pela negligência e a febre de lucro imediato e que continuarão acontecendo na medida em que as populações não consigam que os governos que elegem atuem em favor do povo, deixando de lado esse contrato tácito entre governantes e multinacionais e as suas subsidiárias locais. Por isso, tanto ou mais contundente e arriscado é lutar contra estas fortalezas do capital transnacional, frias e criminais, do que ir para as ruas oferecer resistência ao governo genocida atual.
DCO: Você não acha uma “coincidência” os mais afetados pelos crimes ambientais dos capitalistas serem sempre os mais pobres?
Pronzato: Certamente não é coincidência (embora as consequências também sejam sentidas pelas classes sociais mais abastadas, a depender do local atingido nesses crimes) é programação calculada dos departamentos comerciais das empresas, inclusive calculando os prejuízos ambientais e de vidas humanas (e de toda espécie animal) que constam da projeção que essas empresas realizam antes da destruição, antes de ser efetivados.
DCO: Você acha que há uma tentativa da Braskem em esconder o problema visto a falta de repercussão na imprensa burguesa? Como você acha que não apenas a Braskem, mas todo o capital financeiro está agindo para este obscurecimento?
Pronzato: Todos os crimes que estas empresas cometem ao redor do mundo vêm seguidas imediatamente de uma poderosa e milionária barreira de propagandas junto a um jornalismo submisso dos grandes meios informativos hegemônicos. Até o pouco que é veiculado nessa imprensa é controlado por eles. Também se utilizam de uma propaganda que atua por meios mais sutis e diretos sobre a população atingida para que esta aceite as condições impostas por estas empresas, indenizações e compensações econômicas de ressarcimento, idealizadas, promovidas e decididas através de acordos com órgãos públicos. Nas famosas notinhas de imprensa em que estas empresas respondem diariamente às matérias denunciativas, fica claro esse poder e essa atitude de desrespeito com a sociedade no seu conjunto. Portanto, o capital financeiro mundial como um todo atuou, atua e atuará nessa perspectiva de ocultação e propaganda até o dia em que uma mineração pautada pelo controle de órgãos de um estado responsável – controlado por uma população consciente de que a sua vida está em jogo em cada movimento dessa tecnologia extrativa – consiga ser implementada. Mas isto, como já sublinhei, depende de transformações estruturais, políticas e sociais de longo prazo pautada pela organização popular.
DCO: Como foi o processo de criação do documentário? O que este documentário tem de diferente dos seus trabalhos anteriores (além do tema, é claro)?
Pronzato: O processo foi similar a outros tantos documentários por mim realizados. Imersões em temas complexos, mas que permitam uma rápida elaboração criativa para ter uma incidência política rápida nas questões envolvidas e assim, que tenham serventia agora, imediatamente, e também como abertura de debates posteriormente, resguardando a memória das lutas populares. O fato de sempre atuar junto às organizações e indivíduos afetados, respondendo em coro aos ataques diários e midiáticos destas empresas e ou governos, também foi parte desta obra de denúncia e tomada de posicionamento das vítimas, amplificando as suas vozes. Acredito que este documentário não seja muito diferente de outros da mesma linha que eu tenha produzido ultimamente. Talvez sim ressaltar a coragem e empenho de indivíduos e povo organizado em associações de luta que conseguiram quebrar a nossa bolha habitual de disseminação informativa e atingiram espaços geralmente intransponíveis para as possibilidades comunicativas destes documentários de intervenção política. Isto também se deve aos jornalistas de Alagoas que abraçaram a causa, seja qual for o meio para os quais trabalham. E desta vez o tema da mineração de sal-gema explodiu no país, depois de três anos de ostensivo ocultamento midiático por parte da Braskem.
DCO: Pronzato, nos seus documentários, você monta a narrativa através das entrevistas, ao invés de inserir elementos externos, como um narrador ou trilhas sonoras muito elaboradas. Como você chegou a esta “fórmula” de como fazer documentários?
Pronzato: Não acredito que seja “fórmula”, apenas uma vertente que foi aparecendo ao longo dos anos e de diversos trabalhos, muito mais complexa também, por que a narrativa tem que ser achada nos depoimentos – e não é qualquer depoimento, é um árduo trabalho de encontrar as palavras justas. Não há um roteiro prévio – sim uma exaustiva pesquisa do tema dentro das possibilidades de um cinema de guerrilha – que delimite trilhas a seguir com maior tranquilidade, apenas mapas gerais com diversas estradas a seguir, sempre optando por aquelas que levem a um objetivo em comum. Portanto, o resultado final, partindo de um caos expressivo e criativo, deve chegar a uma cosmovisão que se adéque a uma recepção elaborada e consensual do público através do tempo. Sempre tento, e talvez ali esteja a chave destes documentários que privilegiam a História Oral, colocar em prática o treino constante de minhas outras duas atividades, o Teatro e a Literatura, que também procuram dar voz a inúmeros personagens do dia a dia.
DCO: Qual impacto que você espera que o seu documentário tenha para os próximos capítulos deste caso?
Pronzato: O impacto já aconteceu. Recebemos inúmeras mensagens de satisfação e elogio pelo trabalho realizado para impulsionar esta luta. O fato de ter me cercado das pessoas certas que conheciam o tema faz anos, como o nosso assistente de direção (Benival Farias, o Barbam) e também o produtor de campo (Paulo Marques, do MAM, Movimento pela Soberania Popular na Mineração), ambos residentes em Maceió, além do nosso editor (Xeno Veloso), mineiro que conhece em profundidade a desastrosa atuação das mineradoras. Então, a rede real, social e virtual dessa cidade já foi ativada desde o lançamento em 5 de agosto, no ato presencial na simbólica Igreja Batista de Pinheiro, espaço de luta sobre este tema desde o início, graças à atuação esclarecedora do Pastor Wellington. Um impacto imediato também ativado desde o início em parceria com Sindicatos de luta, alagoanos e de outros estados e movimentos parceiros como o MUVB (Movimento Unificado das Vítimas da Braskem), os depoimentos da S.O.S. Pinheiro e outros tantos grupos e militantes de diversos setores e camadas sociais. Esperemos que o país entenda o acontecido em Maceió e proceda a atuar em favor da causa dos atingidos, que é o mesmo que atuar em favor das suas próprias vidas, visto o poder absoluto destas empresas quando atuam amparadas por governos.
Um documentário dentre muitos
Você pode assistir a este documentário e diversos outros no canal do diretor Carlos Pronzato no YouTube.
Abaixo o link para “A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió”.