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A luta de classes na obra de Carolina de Jesus – parte 1

Primeira parte de texto sobre a obra de Carolina de Jesus

Por Emanuel Gomes

A chave para compreender a obra de Carolina Maria de Jesus é a luta de classes. Com exceção, talvez, de Graciliano Ramos, cujos livros foram escritos sob o influxo de uma nova consciência política sobre o atraso social brasileiro, a partir da década de 30, ela foi a escritora que mais tematizou – em sua produção diarística, ficcional, poética, teatral e musical – o antagonismo histórico entre exploradores e explorados em nossa literatura.

Como descendente de ex-escravizados, trabalhadora infantil, migrante, empregada doméstica, moradora de favela, catadora de papel e, após a fama efêmera, alguém que passou a viver basicamente da agricultura de subsistência, Carolina viu e viveu – com a consciência aguda e o olhar crítico que desenvolveu ao longo dos anos – as agruras que a desigualdade entre as classes sociais no Brasil provocava na vida dos pobres e marginalizados. Produziu, assim, o que poderíamos chamar de uma literatura vista de baixo, em que as relações antagônicas entre dominadores e dominados apresenta-se como elemento fulcral da composição artística.

É preciso deixar claro, porém, que a luta de classes na obra da escritora mineira não aparece nos termos da filosofia marxista ou da teoria política tradicional[1]. Até onde se sabe, Carolina jamais leu o Manifesto do partido comunista ou algo do gênero. Lembremos, inclusive, que a escritora foi mesmo próxima de certas figuras políticas associadas à direita, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros (fato que atribuímos, no entanto, à necessidade de encontrar auxílio, nas demandas mais urgentes da vida, em quem o podia oferecer de forma mais imediata).

A percepção dela do conflito social fundamental advém, sobretudo, da práxis; de uma visão – muitas vezes contraditória, errática e, em alguns casos, simplista – construída através do sofrimento vivido na própria pele escura e, também, conforme discorreremos mais à frente, de um intenso interesse político forjado através do contato comcertos personagens e leituras pontuais que podemos identificar em sua biografia.

Como alguém que só teve acesso às “franjas” da cultura letrada oficial, com seus dois anos de ensino primário e seu autodidatismo feito dentro de condições precárias, Carolina adota, inclusive, um discurso conservador e moralista em muitos de seus textos. Ultrapassando essa camada ideológica de seu pensamento, contudo, deparamo-nos com uma compreensão candente da assimetria brutal entre as classes sociais no Brasil e suas consequência nefastas para os de baixo, inviabilizando qualquer tipo de conciliação duradoura.

Para demonstrar essa constatação, gostaríamos de analisar a sua trajetória como escritora, do seu primeiro texto divulgado em jornal que temos notícia até Diário de Bitita, obra memorialística publicada postumamente.

O primeiro registro histórico conhecido de Carolina como literata aparece no jornal paulistano “Folha da manhã”, no dia 25 de fevereiro de 1940. Intitulada “Carolina Maria, poetiza preta”, a matéria jornalística trazia uma entrevista com a, então, jovem escritora mineira, na ocasião com 26 anos. Nela, Carolina, além de se queixar das dificuldades vividas como empregada doméstica, apresenta o poema “O colono e o fazendeiro”, de grande importância no conjunto de sua obra: ele ressurgirá, com leves alterações, nos livros Casa de alvenaria, lançado em 1961, e nos póstumos Antologia pessoal e Clíris, de 1996 e 2019, respectivamente. Leiamos algumas estrofes do poema em questão:

Diz o brasileiro

que acabou a escravidão.

colono sua o ano inteiro

e nunca tem um tostão.

Se o colono está doente

é preciso trabalhar.

Luta o pobre no sol quente

e nada tem para guardar.

(…)

Nunca pode melhorar

esta negra situação

carne não pode comprar

pra não dever ao patrão.

(…)

trabalhando – que grandeza!

Passa o ano inteiro

enriquece o fazendeiro

e termina na pobreza.

Se o fazendeiro falar:

– Não fique na minha fazenda

colono tem que mudar 

pois não há quem o defenda[2].

Como podemos facilmente perceber, a luta de classes aparece aqui em toda a sua dramaticidade, através da denúncia veemente da exploração dos trabalhadores do campo, da ausência de direitos, do racismo (“esta negra condição”), e do monopólio fundiário como prerrogativa da arbitrariedade inquestionável.

Devemos lembrar que este poema nasce de uma experiência concreta na vida de Carolina: ela, a mãe, o padrasto e o irmão foram expulsos de uma fazenda em Uberaba, sem qualquer indenização, porque o dono daquelas terras acreditava não estar recebendo o lucro devido da lavoura em que ela e os familiares trabalhavam como meeiros.

Como podemos perceber, desde a sua primeira manifestação como voz autoral, Carolina optava por divulgar um poema em que a iniquidade da sociedade brasileira e a luta de classes dela decorrente ganhava o primeiro plano temático. Longe de uma escolha fortuita para figurar na matéria jornalística em questão, “O colono e o fazendeiro” anunciava o tipo de tema que obsedaria Carolina em toda a sua produção artística.

O que nos leva ao primeiro livro publicado pela escritora, vinte anos após essa matéria no “Folha da manhã”: Quarto de despejodiário de uma favelada.

A história por trás do surgimento dessa obra é bastante conhecida, mas cabe relembrá-la sucintamente aqui. Em 1958, o repórter Audálio Dantas, realizava uma reportagem para o jornal Folha da Noite na favela do Canindé. As versões sobre a ida dele àquele lugar divergem um pouco (há versões segundo as quais a própria Carolina telefonara para a redação do jornal solicitando a presença da imprensa na favela), mas o relato que se consagrou foi que Dantas havia se deslocado ao local com a ideia de fazer uma reportagem sobre o lugar. Ao chegar a um “parquinho” que a prefeitura de São Paulo instalara ali, deparou-se com uma discussão entre alguns homens que haviam tomado os brinquedos para si, impedindo as crianças de se divertirem, e uma mulher negra e alta que ameaçava, aos gritos, colocar o nome deles no livro dela caso eles continuassem com aquela atitude – essa mulher era Carolina. Desse encontro, como é amplamente conhecido, surgiu o livro Quarto de despejo, que registra, em forma de diário, o cotidiano da favela do Canindé e, também, da cidade de São Paulo, dos dias 15 de julho de 1955 a 1 de janeiro de 1960, com uma lacuna de três anos entre uma data e outra (Carolina abandonara o diário entre 29 de julho de 1955 e 1 de maio de 1958).

Quarto de despejo é um livro complexo, eclético e que, apesar de utilizar em muitos momentos uma retórica retirada do Romantismo, escola literária pela qual Carolina tinha grande apreço, apresenta um caráter profundamente moderno. O primeiro elemento de sua complexidade reside no fato de que é essencialmente um diário – ou seja, um escrito íntimo –concebido, porém, para ser lido por um amplo público. Seu ecletismo, por outro lado, advém da recorrente mistura de gêneros que nele encontramos, em que o registro do dia a dia mescla-se a provérbios, notícias de jornal e poemas, entre outros tipos de discurso mobilizados por Carolina. A modernidade dessa obra consiste, por fim, na representação crua e realista da sociedade brasileira, a partir da vida paulistana, dentro do chamado período desenvolvimentista levado adiante pelo governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960).

Na realidade, a narrativa de Quarto de despejo captura um momento decisivo da história do país. Kubitschek, herdeiro do populismo de Getúlio Vargas, levou adiante uma política que se equilibrou em polos contraditórios: ao mesmo tempo que abria a economia nacional para o capital estrangeiro, facilitando a entrada da produção industrial de outros países e contraindo vultosos empréstimos com instituições financeiras internacionais, como o FMI, praticava também um governo de forte intervenção estatal no setor industrial, de construção e de transportes, por exemplo. Dessa forma, procurava levar adiante uma delicada tentativa de conciliação de classes, gerando empregos para as massas, cada vez mais numerosas e reivindicativas, e enormes lucros para importantes frações da burguesia brasileira, além de consolidar a classe média nacional.

Nesse sentido, a concepção e construção de Brasília como a nova capital federal – maior feito político de Juscelino – exercia um papel estratégico: levava desenvolvimento para o interior do Brasil, descentralizando a economia, diminuía um pouco o ritmo do intenso fluxo de migração de amplos setores populacionais das regiões mais empobrecidas do país para o Sudeste, através de uma grande oferta de empregos na construção civil, e fortalecia a intervenção do Estado como motor e vetor da economia.

Tais esforços, porém, beneficiavam, sobretudo, as zonas urbanas do país, deixando intocadas as questões relacionadas ao latifúndio e a exploração no campo (tematizados por Carolina em “O colono e o fazendeiro”), o que, no fim das contas, fez com que enormes contingentes de pessoas continuassem migrando para os grandes centros urbanos à procura de melhores condições de vida, inchando as grandes cidades, agravando os problemas de moradia e alimentação e fazendo o custo de vida nesses locais disparar. Somando-se esse fato ao brutal endividamento das finanças públicas – o que diminuía a capacidade do Estado de investir nas instituições e serviços que garantiriam o bem-estar do povo – é mais fácil entender os graves problemas urbanos que Carolina descreve em seu primeiro livro publicado.

Refletindo todo esse contexto político e social, a luta de classes manifesta-se em Quarto de despejo já a partir de sua metáfora doméstica central: a separação entre os espaços da “sala de visitas-palácio-cidade” e o “quarto de despejo-depósito-favela”. Escreve textualmente Carolina no dia 19 de maio de 1958:

“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.”[3]

Em tal metáfora, Carolina captura com sagacidade a divisão social não apenas paulistana, mas nacional, ao colocar, de um lado, os espaços de poder, luxo e privilégio desfrutados por uns e, de outro lado, os espaços de impotência, precariedade e exclusão vivenciados por outros – os espaços da burguesia e o do subproletariado.

Apesar de seu senso de distinção por dominar o código escrito, seu preconceito contra nordestinos, suas eventuais falas machistas e sua defesa intransigente do trabalho e da abstemia como elementos de dignificação – ou seja, apesar de toda a sua confusão ideológica – a escritora mineira mantém nas páginas de Quarto de despejo uma percepção extremante crítica da realidade brasileira que se apresentava.

Aqui, contudo, é importante considerar com sutileza um aspecto da composição literária dessa obra: Carolina dá ênfase ao tema do antagonismo entre as classes através, sobretudo, da crítica às instituições sociais burguesas.

Ora, como não tinha acesso à convivência direta com as camadas das classes média e alta, era nas instituições oficiais da burguesia com as quais a autora de defrontava no dia a dia – ou melhor, no desmascaramento dessas instituições – que Carolina conseguia dar figuração literária à luta de classes em seu diário.

Para confirmar essa percepção, gostaria de selecionar três passagens do livro em questão. Em todas, o que percebemos é o olhar de uma pessoa do estrato mais marginalizado da cidade de São Paulo, Carolina, desmontando o discurso das instituições de sua classe inimiga.

No dia 23 de maio de 1958, Carolina escreve em seu diário:

“… Nas ruas e casas comerciais já se vê as faixas indicando os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já são conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas urnas. Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o cavalo de Troia que aparece de quatro em quatro anos.”[4]

Neste trecho, a escritora manifesta o desinteresse do povo pelas manifestações do período eleitoral, a partir da perspicaz metáfora do “cavalo de Tróia”, em que – tal como no episódio descrito por Homero na Ilíada – um grupo adversário (os políticos) utiliza uma falsa dádiva (as promessas eleitorais)para ludibriar e penetrar na vida de seus rivais (o povo). Carolina explicita, desta forma, a distância e a divergência de interesses entre a população pobre e os representantes políticos dos “ricos” – ou seja, da burguesia – no Brasil.

Em outro momento do livro (22 de maio de 1958), Carolina rememora o episódio em que procurou atendimento médico no Serviço Social e se deparou com o cinismo com que é tratada pelo poder estatal a população pobre:

“Em junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço Social. Devido eu carregar muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas deslizar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se desenrola. A ironia com que são tratados os pobres. A única coisa que eles querem saber são os nomes e os endereços dos pobres.”[5]

Embora católica, a pregação religiosa também é vista com muita desconfiança pela narradora de Quarto de despejo. As tradicionais admoestações de humildade das autoridades cristãs são entendidas mais uma vez a partir da demagogia de pessoas que não têm de conviver com uma realidade pessoal de privação e escassez. Referindo-se à figura de Frei Luiz, um religioso que realizava caridade na favela, lemos em um trecho do diário (8 de julho de 1958):

“Fico pensando na vida atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salário mínimo, ai eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo gêneros deteriorados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras.”[6]

Em todas essas passagens do livro de Carolina, a sociedade brasileira surge como uma realidade estruturada a partir da impotência dos pobres diante de um aparato institucional que não os contempla, que não é feito para eles, mas para atender aos interesses de outrem, os ricos, a burguesia. Mediada por metáforas (“Palácio de cristal”, “Quarto de despejo”, “cavalo de Troia” etc.) e pela crítica ao descaso governamental e à demagogia política e religiosa, o antagonismo entre as classes brasileiras desdobra-se tematicamente, de forma aguda, por todas as páginas de Quarto de despejo.

Já em seu livro seguinte, Casa de alvenaria, lançado em 1961, Carolina muda de perspectiva no que diz respeito à relação entre as classes no país. Após o sucesso de Quarto de despejo e a consequente fama angariada com ele, a escritora passou a conviver com as elites intelectuais, sociais e políticas de vários estados do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco, por exemplo – e até internacionais, nas visitas que fez à Argentina, ao Uruguai e ao Chile. Pôde observar de perto, portanto, o comportamento das pessoas pertencentes a esses estratos da classe dominante. Suas críticas, em decorrência disso, deixam de direcionar-se às instituições e passam a focalizar o comportamento dos membros das mencionadas elites.

Os leitores de Quarto de despejo poderão perceber que o tom adotado por Carolina em seu novo livro difere de sua obra anterior. Abandonando a poesia, o lirismo e as diversas passagens oníricas de seu primeiro diário, a escritora faz uso de um estilo mais “seco”, repleto de mordacidade e ironia, para tratar daquele novo mundo em que penetra – a “sala de visitas”, como ela diz.

É claro que as relações que Carolina trava com as pessoas daquele novo ambiente social poderiam dar-se apenas dentro de uma grande tensão. Ao receber uma homenagem da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, por exemplo, é interrogada por um dos presentes na plateia como podia estar recebendo uma láurea daquele tipo sendo negra.[7] Em outra passagem do diário que revela essa tensão, a escritora registra, no dia 19 de outubro de 1960:“Alguns críticos dizem que sou pernóstica quando escrevo – os filhos abluiram-se – Será que preconceito existe até na literatura? O negro não tem direito de pronunciar o clássico?”. Ou, apenas para dar mais um exemplo do desconforto de Carolina com sua nova situação: “Eu ainda não habituei com este povo da sala de visita – uma sala que estou procurando um lugar para sentar.”[8]

Em uma das críticas diretas que faz aos convivas de uma festa da qual participava, a escritora vitupera a hipocrisia de algumas madames da alta sociedade que lhe falavam à mesa:

“As mulheres que estavam na minha mesa falavam em reforma social.

– Não é justo deixarmos os favelados relegados no quarto de despejo. Você fez bem em nos alertar para esse problema. Temos que amparar os infaustos. Você demonstrou coragem lutando para sair daquele antro.

Eu pensava: elas são filantrópicas nas palavras. São falastronas. Papagaios noturnos. Quando avistam-me é que recordam que há favelas no Brasil.”[9]

Na realidade, Casa de alvenaria pode ser lido por duas entradas: a) como um retrato que Carolina pinta do lado infausto da fama –compromissos midiáticos incessantes, exploração da imagem da escritora e assédio intenso por aproveitadores e desalentados de todo tipo; ou b) como representação literária de um país em convulsão.

Em relação a este segundo ponto, é preciso lembrar que a luta de classes no Brasil atingia um momento crítico no início dos anos 1960, justamente o período coberto pelo segundo diário publicado de Carolina.

O endividamento das finanças do Estado pela política desenvolvimentista de Juscelino, a diminuição do fluxo de capital estrangeiro em decorrência desse processo, o exorbitante custo de vida (inflação), a renúncia de Jânio Quadros, a chegada tumultuada de João Goulart à presidência e também o cenário de Guerra Fria – fazendo a política imperialista norte-americana temer que ocorresse no Brasil algo como a revolução cubana de 1959 – fizeram com que o impasse entre as reivindicações populares no campo e na cidade, o medo da “ameaça comunista” pela classe média e a sanha golpista da nossa burguesia e seu representante militar, as Forças Armadas, alcançassem um nível verdadeiramente explosivo (que, como sabemos, seria decidido politicamente através do golpe empresarial-militar de 1964).

Com seu costumeiro olhar arguto, Carolina retrata – paralelamente aos seus próprios conflitos pessoais – esse clima de conflagração social. Assim, lemos em Casa de alvenaria passagens como esta, escrita em 13 de dezembro de 1960:

“Disseram que sou comunista porque tenho dó dos pobres e dos operários que ganham o insuficiente para viver. E não tem um defensor a não ser as greves, meios que recorrem para melhorar suas condições de vida. Mas são tão infelizes que acabam sendo presos e dispensados do trabalho. Conclusão: o operário não tem o direito de dizer que passa fome.”[10]

O leitor atento vai notar que Carolina conclui Casa de alvenaria narrando um acalorado debate que ocorre após uma apresentação da adaptação teatral de Quarto de despejo. Aparentemente a escolha de um desfecho aleatório para seu segundo diário, o episódio do debate condensa e faz irromperem as inúmeras tensões sociais que atravessam todo o livro, através do discurso acalorado e conflitivo dos intelectuais e políticos que dele tomam parte. Assim, Carolina escreve:

“Fico horrorizada vendo a fome debatida em assembleia. O Deputado Cid Franco disse que passou fome e conhece as agruras que o meu livro relata. Que o regime capitalista é a causa das desigualdades de classe. […] Se existe favelas são criadas e alimentadas pelo regime capitalista, que suga a seiva da classe salarial para duplicar seus haveres.

– Não apoiado – respondeu o Dr. Paulo Suplicy.

Um jovem na plateia disse que o Deputado Cid Franco errava aludindo ao regime capitalista o desajuste social. O Deputado Cid Franco disse:

– Tenho um filho de 18 anos que não teme a extinção do regime capitalista. […]

Os demais estavam nervosos. Dava impressão que ia haver um conflito no teatro. Os estudantes apupavam Dona Conceição.

…Quando saí do teatro encontrei o jovem Eduardo Matarazzo e disse-lhe:

– Você viu que confusão?”[11].

A temática da luta de classes, presente nos dois primeiros diários de Carolina Maria de Jesus, receberia uma nova abordagem em Pedaços da fome, livro que a escritora publicou às suas próprias expensas em 1963.


[1]“desde que os meios de produção se tornaram sociais e foram concentrados nas mãos dos capitalistas, tudo mudou. O trabalho assalariado, outrora exceção e suplemento, tornou-se a regra e a base de toda a produção; outrora ocupação acessória, monopolizou todo o tempo de trabalho do produtor. O assalariado de um dia tornou-se assalariado por toda a vida. Realizou-se a separação entre os meios de produção, concentrados nas mãos dos capitalistas, e os produtores reduzidos a só possuírem sua força de trabalho. O antagonismo entre produção social e apropriação capitalista se afirma como antagonismo entre proletários e burgueses.” In: ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Tradução Edimilson Costa. São Paulo: Edipro, 2010. p. 79.

[2]Casa de alvenaria, p. 92 – 93. Grifos nossos.

[3]JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014. p. 37.

[4]Obra citada. p. 43. Grifos nossos.

[5]Idem. p. 42.

[6]Ibidem. p. 85-86.

[7]JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria. São Paulo: Francisco Alves, 1961. p. 55.

[8] Idem, p. 66.

[9] Ibidem, p. 96-97.

[10]Obra citada, p. 105.

[11]Idem, p. 182-183.

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