Na última semana a rede de supermercados Carrefour decidiu transformar sua segurança privada em segurança contratada diretamente, em oposição à segurança terceirizada. A decisão vem como consequência do brutal assassinato de um homem negro, João Alberto Silveira de Freitas, em Porto Alegre (RS), com a condição de que a contratação seja supervisionada por organizações empresariais que supostamente defendem os negros. A medida foi proposta pelo chamado “Comitê Externo e Independente” criado para fazer acareação do caso.
É preciso em primeiro lugar estabelecer uma crítica à medida e aos setores da esquerda que a consideram suficiente, ou até útil. A ideia de que transferir a contratação de uma segurança patronal por as mãos de outro patrão teria alguma incidência sobre a violência contra a população negro é absurda.
O racismo não se encontra em seguranças terceirizadas. As PMs, cujos policiais são contratados diretamente, são as maiores expoentes do genocídio negro. Por mais absurdo que seja discutir tal obviedade.
A ideia de que organizações patronais negras também seriam uma barreira para o racismo é igualmente ingênua. O problema não está também no tipo de profissional contratado, pois se fosse teríamos de constatar que praticamente todos os contratados para profissões de segurança pública e privada não tem vocação para o ramo e são racistas inveterados, isso num país com maioria negra.
Mas a maior das contradições nem está no parco uso da lógica utilizado pelos membros do tal comitê. Está no fato de que entre os membros do Comitê está Sílvio Almeida, professor universitário do Mackenzie, um intelectual que se diz marxista e defende a tese identitária do racismo estrutural.
Pelos proponentes desta tese, o racismo não derivaria de uma reação real e material de opressão, mas de uma mentalidade, uma cultura, um determinado conjunto de preconceitos profundamente incrustados na cabeça das pessoas. Almeida teria então de explicar se o tal racismo estrutural desapareceu quando o Carrefour, empresa francesa, assumiu a contratação. Teria ainda de explicar se este processo, além de melhorar a reputação da empresa, terá algum efeito real para o trabalhador negro.
O fato de o comitê do qual Sílvio Almeida faz parte ter chegado a esta parca conclusão demonstra o caráter inócuo desta ideologia, pois simplesmente não encontraram uma proposta viável, até porque num comitê criado por uma empresa capitalista não haveria muita solução.
É preciso lembrar também, que nem a contratação de negros para as profissões de segurança resolveu o problema. Na PMERJ, a polícia mais letal do Brasil, 60% das tropas são negras. 42% dos oficiais, se contados apenas os praças, o soldado sem patente, são 66%, para a ironia de todos, a PMERJ foi a organização estatal apontada como a que mais emprega negros no Rio de Janeiro.
O problema de representação também não resolve a questão. Durante as eleições a direita hesitou em criticar candidatos direitistas negros, vários deles de extrema-dirieta. Para muitos não se trata de resolver o problema objetivo da opressão do negro, se trataria de colocar negros em posições de poder, que isso resolveria a situação: um grupo de empresários “supervisionando” as contratações, um prefeito negro eleito, e assim por diante. A realidade, no entanto é bem contrária. Em vários casos, como o do vereador Fernando Holiday, a “representatividade”, como dizem os identitários, é usada mais como uma cobertura para os ataques racistas da burguesia brasileira do que qualquer outra coisa.
O movimento negro movido por ideias confusas como as apresentadas não vê o problema da forma concreta: de que mais importante do qual indivíduo está em qual posição, é qual classe e qual estrato social está com o poder. Se os negros de conjunto estão em pé de igualdade, é um avanço, um vereador negro que mais defende a manutenção dessa desigualdade não depõe a favor de nada.
Isso também se aplica às declarações de intenções, pelas quais os identitários são rapidamente enganados. Um caso recente e digno de nota é o caso de Joe Biden. O presidente-eleito dos EUA durante sua campanha deu declarações de que era favorável aos direitos dos civis dos negros, de que Trump era racista, entre outros acenos a minorias oprimidas nos EUA, no entanto se tratava apenas disso, acenos. Biden é um representante dos tubarões imperialistas norte-americanos. Sua política para o sistema penal, por exemplo, ajudou a prender milhões de pessoas, maioria das quais, são negras. Sua vice, uma mulher negra, Kamala Harris foi procuradora da Califórnia, ela se orgulhava de ter altíssimas taxas de condenação. São dois defensores da política histórica de encarceramento em massa nos EUA, inimigos de classe dos trabalhadores e dos negros, mulher negra ou não. O problema tem de ser visto de forma concreta: quem são as pessoas e qual papel elas representam. O segurança que matou João Alberto tem de ser punido, ele matou um homem, mas ele é apenas um executor de uma política organizada, de um sistema de opressão organizado, do qual a ideologia racista é apenas uma expressão.
O racismo, ou seja, a opressão do negro, não é uma ideia, não é uma cultura, não existe o racismo “estrutural” como propõem os identitários. O racismo é uma expressão política, social e psicológica de uma realidade, a realidade de que na sociedade capitalista o negro não conseguiu atingir a igualdade e se encontra numa posição social inferior a do branco. Não é a ideia que cria a situação de exploração, é a situação de exploração que cria a ideia.
A luta do negro, por conta dessa opressão, funde-se com a luta da classe operária. Elas não são a mesma luta, mas o objetivo é comum. Igualar as condições de negros e brancos no capitalismo é uma impossibilidade. A burguesia sabe que o racismo é uma ferramenta poderosa de contenção de amplos setores, não abrirá mão disso. Mas não adianta apenas liquidar a burguesia, seria preciso um processo de ascensão social para tirar milhões de pessoas da miséria e efetivamente estabelecer uma igualdade de condições. Isso só pode se dar numa sociedade em que os explorados governem, ou seja, o socialismo. Neste sentido, a luta do negro liga-se de uma forma única com a luta de toda a classe trabalhadora, branca, negra, indígena, ou outra, por um objetivo comum, ainda que com problemas de natureza distinta.
O identitarismo ignora tudo isso, transforma o racismo num problema individual, cultural ou ainda de conflito de determinadas “identidades sociais” (negros vs brancos, etc..), mas não é simplesmente disso que estamos falando. Ao colocar esta torta teoria em prática, apoia-se o “antirracista” Biden contra Trump, o vereador Holiday, ou se integra o comitê de encobrimento do crime do Carrefour.