No dia 31 de maio, um importante evento marcou a retomada das ruas pela esquerda. Em um ato que reuniu centenas de pessoas na Avenida Paulista, a maioria delas composta por torcedores do Corinthians, o povo varreu das ruas os bolsonaristas que vinham se manifestando durante a pandemia de coronavírus. O sucesso do ato, sobretudo o seu caráter extremamente combativo, deu um novo impulso para que ocorressem manifestações em todo o País, todas elas confluindo para a trincheira mais comum da luta dos brasileiros: a campanha pelo Fora Bolsonaro.
No entanto, na tentativa de controlar a radicalidade do movimento, os setores da esquerda nacional que apoiam a política da “frente ampla” lançaram mão de uma série de operações de caráter francamente direitista. A esmagadora maioria dos setores que procuraram pôr em prática essa política de contenção do movimento está diretamente ligada a Guilherme Boulos, dirigente do MTST e do PSOL.
Semana após semana, a ala direita do movimento antifascista, liderada por Boulos, procurou intervir, principalmente, nas cidades de Brasília e de São Paulo, onde os atos apresentavam maior potencial. Através de sucessivos acordos com a direita, incluindo a Polícia Militar e governadores como João Doria (PSDB) e Ibaneis Rocha (MDB), esse setor minoritário acabou por estrangular o movimento de torcedores contra o fascismo. Entre os inúmeros expedientes utilizados, podemos citar os acordos que permitiram que a extrema-direita se manifestasse na Avenida Paulista, a proibição de bandeiras e a substituição da cor amarela pela cor vermelha. Certamente que a expressão máxima dessa política direitista se deu no dia 28 de junho, quando um setor do movimento “Somos Democracia” e seu coordenador Danilo Pássaro, tentaram impedir o PCO de levar suas bandeiras e faixas ao ato.
Como era de se esperar, a tentativa dessa ala direita de destruir os atos de rua em favor de uma frente com os inimigos do povo se espalhou pelo Brasil. No Recife, por exemplo, a morte do menino Miguel, filho de uma empregada doméstica e assassinado pela então patroa da mãe, serviu como gatilho para que acontecesse o primeiro ato durante a pandemia de coronavírus. No dia 5 de junho, menos de uma semana depois da manifestação radical dos torcedores na Avenida Paulista, cerca de 150 pessoas saíram às ruas para protestar contra a morte do garoto.
Contudo, assim como aconteceria nos atos em São Paulo e em Brasília, a ala direita do movimento fez de tudo para impedir que a manifestação se transformasse em uma revolta popular. Todos os integrantes da chamada Frente Povo sem Medo, controlada por Guilherme Boulos, decidiram usar apenas a cor preta no ato e proibiram que os partidos políticos abrissem suas faixas e suas bandeiras. O “regulamento do ato” foi apresentado pelos organizadores com o pretexto de que “a família e as pessoas presentes não consideravam que a morte de Miguel era um caso de racismo” e que, portanto, a manifestação não deveria ter um caráter político”. Um pretexto, no final das contas, mentiroso e que encobria uma política muito direitista. Como ficaria claro mais tarde, o “regulamento do ato” foi ditado pela própria Polícia Militar.
No fim do ato, chegaram algumas pessoas das favelas do entorno, mostrando que as “regras” impostas pela esquerda pequeno-burguesa eram uma completa falsificação. Passando por cima da ditadura dos organizadores, o povo começou a gritar Fora Bolsonaro e abriu uma faixa pedindo a queda do presidente ilegítimo. Essa intervenção, embora feita por um setor minoritário naquele ato, foi fundamental para desmascarar a impopularidade dos métodos direitistas da esquerda pequeno-burguesa.
Na última segunda-feira (29), o caso do menino Miguel teve um desdobramento importante. A ex-patroa de sua mãe e primeira-dama da cidade de Tamandaré, Sarí Côrte Real, foi à delegacia de Santo Amaro, no Recife, prestar depoimento sobre a morte do garoto. Diante da repercussão do caso, a delegacia foi aberta em horário extraordinário: às 6 horas da manhã suas portas já se encontravam abertas para recebê-la. Contudo, como Santo Amaro é um bairro popular, na medida em que Sarí Real prestava depoimento, o povo foi se aglomerando em frente à delegacia para protestar. Entre os manifestantes, estava a mãe de Miguel, que dizia que queria falar cara-a-cara com a responsável pela morte de seu filho.
O protesto, no final das contas, reuniu mais de 50 pessoas e adquiriu um caráter completamente diferente do ato organizado no dia 5 de junho. A manifestação da segunda-feira não foi pensada pela esquerda pequeno-burguesa, obcecada em ser aceita pela burguesia em uma frente eleitoral. Foi uma manifestação do povo e, como uma manifestação do povo, foi verdadeiramente democrática e bastante radical. Não houve qualquer veto às bandeiras partidárias ou às palavras de ordem contra o governo. Pelo contrário, os panfletos pelo Fora Bolsonaro eram requisitados febrilmente pelos presentes. E, se no ato anterior, havia uma preocupação em tornar a manifestação o mais insossa possível, o protesto da segunda-feira contou com tentativas do povo invadir a delegacia para linchar Sarí Real e com depredação de seu carro. A primeira-dama só conseguiu sair do local, após longo tempo, porque foi escoltada por um grande contingente de policiais que a levaram até uma viatura. O povo ainda tentou arrancá-la do carro, mas foi impedido pela sua blindagem e pela repressão da polícia.
Não havia ninguém da esquerda além dos militantes do PCO. E o ato foi infinitamente mais radical. Resultando inclusive na quebra de um pedaço do carro da patroa. Só não quebraram totalmente porque havia muitos policiais. Tentaram quebrar um carro da polícia, mas não conseguiram. A patroa saiu escoltada nesse carro da polícia, pois só sairia de lá linchada pelo povo.
O caso do Recife põe às claras a diferença entre um ato do povo e um ato organizado pela ala direita da esquerda nacional. Em uma manifestação popular, o que está em jogo não é a disputa mesquinha por um cargo no parlamento, mas sim a luta real pelos seus interesses. Uma luta que encontra a mais sincera disposição de ir até as últimas consequências. Os atos da frente popular, no entanto, são anti-atos: são eventos concebidos pela direita golpista para expulsar o povo das ruas. O que é importante notar, contudo, é que o controle real da esquerda pequeno-burguesa sobre os atos é bastante limitado: apesar dos métodos direitistas vistos no dia 5 de junho, o povo encontrou uma forma de superar esse esquema paralisante e conservador no dia 29 de junho.
A “frente ampla” é uma traição contra os trabalhadores, impulsionada pela burguesia para conter a revolta e levar toda a população a reboque da direita golpista. É nestes termos que ela deve ser denunciada e combatida. É preciso, portanto, abandonar completamente qualquer tipo de colaboração com a direita, como a que está sendo conduzida pelo setor ligado a Guilherme Boulos, e aproveitar a disposição dos trabalhadores para organizar um movimento de massas pelo Fora Bolsonaro.