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José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

As implicações da aproximação Brasil-China

No dia 20 de novembro, após a realização da reunião de Cúpula do G20, Brasil e China, assinaram 37 acordos de cooperação em mais de 15 temas diferentes

No dia 20 de novembro, após a realização da reunião de Cúpula do G20, Brasil e China, assinaram 37 acordos de cooperação em mais de 15 temas diferentes como agronegócio, educação, cooperação tecnológica e investimentos em diversas áreas.

As parcerias previstas abrangem áreas como infraestrutura, indústria, energia, mineração, finanças, comércio. A China é o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009. No ano passado a corrente de comércio (exportações mais importações) entre os dois países chegou a US$ 157,5 bilhões, com saldo comercial favorável ao Brasil de US$ 51,1 bilhões, um recorde histórico. Esse montante representa mais da metade do saldo comercial total do Brasil no ano passado, que atingiu US$ 98,8 bilhões.  

A relação comercial entre Brasil e China é extremamente benéfica aos dois países. Empresas chineses tem investido no Brasil em vários empreendimentos, como construção de hidrelétricas, ferrovias e outras. Ao mesmo tempo, a grande capacidade do Brasil na produção de alimentos é muito importante para a China, desde 2017, o Brasil é o principal fornecedor de alimentos para o país. Os discursos dos dois presidentes no evento do dia 20 mencionam sinergias na área de desenvolvimento econômico, com destaque para a Nova Indústria Brasil (NIB), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Programa Rotas da Integração Sul-Americana e a Iniciativa Cinturão e Rota. Para transformar os acordos assinados em ações concretas, duas forças-tarefas deverão apresentar projetos em até 60 dias. 

As relações diplomáticas entre Brasil e China já tem 50 anos. Em 1988 foi iniciado entre os dois países o Projeto Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS), que é um programa de cooperação tecnológica entre o Brasil e a China para o desenvolvimento e operação de satélites de sensoriamento remoto.  Com todas as limitações, o Projeto resultou na produção e envio de seis satélites ao espaço, dos quais, dois ainda estão em operação (o Cbers-4 e o Cbers-4ª). Esses satélites têm várias aplicações, como o monitoramento de recursos hídricos, controle de desmatamento e queimadas, identificação de desastres naturais, monitoramento de crescimento das cidades etc. 

Claramente uma aliança estratégia com a China, em áreas vitais como desenvolvimento, tecnologia, segurança nacional e soberania, interessa muito aos dois países. Essas são a duas maiores economias em desenvolvimento em seus respectivos hemisférios, e possuem grande nível de complementariedade. O esforço de cooperação entre os dois países, que está sendo empreendido neste momento é o mais importante dos 50 anos de relações diplomáticas. Porém, é preciso assinalar que, em face do processo de polarização mundial, que traz neste momento, inclusive, o risco de um conflito de proporções globais, a concretização dos projetos em conjunto não será simples. 

Por exemplo, entre os 37 atos assinados, há um memorando entre a Telebras, ligada ao Ministério das Comunicações, e a chinesa Shanghai SpaceSail Technologies, cujo objetivo é o fornecimento de serviços de telecomunicações via satélite. Se o acordo evoluir irá atingir diretamente os interesses da Starlink, empresa de Elon Musk que fornece serviço de internet via satélite locais remotos, onde não existe infraestrutura local, como cabos e postes. Não apenas por esse projeto, mas no conjunto, a aproximação com a China, não interesse aos EUA, que se acham dono da América Latina, e têm cuidado especial pelo Brasil, em função do protagonismo do país na região.  

Como é conhecido, há mais de uma década a China anunciou um projeto de investimentos em infraestrutura inédito na história, o Cinturão e Rota, conhecido como a Nova Rota da Seda. Por razões políticas, o Brasil não aderiu expressamente ao projeto, para não entrar em trajetória de colisão com os EUA, o que mostra que a soberania nacional é bastante relativa e limitada. O Projeto já conta com a adesão de mais de 150 países em todos os continentes, indicador que por si só já evidencia a sua envergadura. 

Com 11 anos de existência do projeto, o montante de investimentos na Ásia, Europa e África já ultrapassou a cifra de US$ 1 trilhão. Os setores de petróleo e gás representam cerca de 80% dos investimentos chineses em outros países, e cerca de 66% dos contratos de construção. Estimativas apontam que o projeto irá significar investimentos na economia mundial de até 7 trilhões de dólares, por ano, até 2040. Dos mais de um trilhão de dólares investidos na primeira década de existência da Nova Rota da Seda, boa parte foi destinado a países da África, América do Sul e Oriente Médio. 

É fácil entender a receptividade do projeto nos países contemplados pelos investimentos. A China oferece a países subdesenvolvidos, algo que lhes falta absolutamente, que é capital para investimentos em infraestrutura, em troca de relações comerciais assentadas em bases bastante amigáveis, no princípio do ganha-ganha. Alguns analistas têm apontado que a proposta é uma espécie de armadilha para tornar os países subdesenvolvidos dependentes da China, em função da contração de dívidas. Mas, até onde se sabe, os empréstimos têm ocorrido com base em taxas de juros menores que a média mundial e, em situações particulares, há um perdão da dívida para países que estão em situação econômica muito difícil. O projeto de Nova Rota da Seda só é possível porque a China é independente do imperialismo, ou seja, porque exerce sua soberania nacional. Obviamente as ações da China levam em conta o comportamento do Império, mas o governo está longe ser um instrumento daquele. Ou seja, o país tem estratégia própria de desenvolvimento nacional, baseada inclusive em planejamento estratégico de largo alcance. 

Somente um país soberano consegue desenvolver um projeto de desenvolvimento econômico inédito na história mundial. A postura da China na execução das políticas da Nova Rota da Seda é oposta à dos países imperialistas. Estes não fazem investimentos para desenvolver países subdesenvolvidos, sua política é de vampirização dos recursos existentes: privatizações a preço de banana, extração de recursos naturais estratégicos até o esgotamento, empobrecimento da população local etc. 

A ação da China no continente africano, se materializa em ajuda financeira aos governos, construção de estradas e ferrovias, desenvolvimento de projetos de infraestrutura em geral. Em agosto último, por exemplo, a China concluiu em 72 horas a construção de 20 mil casas em Joanesburgo, África do Sul. O projeto, que significou um investimento de US$ 300 milhões, se baseou na impressão 3D e no uso de robôs. Alguém já ouviu falar que países imperialistas fizeram, em algum momento, algo sequer parecido, em qualquer parte do mundo? Obviamente os chineses têm interesses econômicos e geopolíticos concretos, não fazem isso por caridade. Eles investem, querem receber o retorno dos investimentos, como seria de se esperar. Mas nada tem a ver com a política imperialista de tomar conta dos mais lucrativos ramos da economia local, adquirir as principais empresas nacionais e começar a ganhar dinheiro imediatamente. 

Os chineses não promoveram em nenhum país do mundo o que o imperialismo realizou no Brasil, por exemplo, nos governos de Fernando Henrique Cardoso, quando foram entregues setores inteiros da economia ao capital internacional, vendendo empresas chaves a preço de banana. Mas analisemos um caso muito recente, a entrega da Eletrobrás. Alguém acreditaria que a privatização apressada da Eletrobrás, durante o governo “patriótico” de Jair Bolsonaro foi realizada em nome dos interesses do Brasil? Privatizaram o maior sistema elétrico da América Latina porque é um verdadeiro filé mignon e já está proporcionando lucros volumosos e garantidos aos grupos econômicos, que o arremataram a preço de banana.

Ao que se saiba, a China não está fazendo nada parecido com isso em qualquer parte do mundo. Não há por parte do país, nas relações comerciais com os outros países, uma política predatória, de sugar a economia nacional, destruir as riquezas nacionais, de inviabilizar o desenvolvimento nacional. Apesar de uma abordagem na imprensa ocidental de franca hostilidade à China, não se escuta que eles tenham se apropriado de algum ativo de algum país que tenha atrasado o pagamento de empréstimos. 

Pelo contrário, em 2022, o governo chinês anunciou o perdão de 23 empréstimos sem juros fornecidos a 17 países africanos e o redirecionamento de US$ 10 bilhões de suas reservas do Fundo Monetário Internacional (FMI) para nações do continente africano. O gesto revela que a Nova Rota da Seda, além de um projeto de caráter econômico, é também uma compreensível estratégia de ampliar a influência política da China no mundo. 

O fato de que o Brasil não tenha ainda aderido à Nova Rota da Seda indica o quanto o governo Lula está pressionado. A política do governo brasileiro de tentar uma política de soberania e desenvolvimento nacional, sem ao mesmo tempo desagradar o imperialismo, está se mostrando cada vez mais difícil de ser operada. Há uma avaliação, por parte do governo norte-americano, que a China está ocupando um espaço econômico desproporcional ao seu poderio geopolítico e militar no mundo. Do ponto de vista econômico, os EUA avaliam que o grande inimigo a ser abatido é a China. 

Não será fácil estreitar relações com a China, mesmo usando um pouco de dissimulação. Em 2015, em plena articulação do golpe que se materializaria no ano seguinte, o governo brasileiro assinou com o governo chinês, 35 acordos de cooperação em oito áreas, que envolviam investimentos de US$ 53 bilhões. As áreas que seriam beneficiadas com os acordos assinados eram as mesmas dos acordos recentes, assinados no dia 20: planejamento estratégico, infraestrutura, transporte, agricultura, energia, mineração, ciência e tecnologia e comércio.

Destes projetos, um dos mais ambiciosos era o projeto ferroviário transcontinental que deveria percorrer o Brasil de leste a oeste, atravessar a cordilheira dos Andes até chegar aos portos peruanos. A ferrovia ligaria o Oceano Atlântico, a partir do Rio de Janeiro, ao Oceano Pacífico, no Peru. O objetivo era facilitar a exportação de matérias-primas do Brasil e do Peru para o mercado chinês. Estava prevista inclusive uma linha do Tocantins até chegar ao Peru, com ganhos para os produtores com a redução de custo na logística. Tudo indica que estes planos de aproximação Brasil-China foram decisivos para a tomada de decisão dos EUA, de acelerar o golpe no Brasil. Consumado o golpe, claro, todos esses projetos foram sumariamente engavetados.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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