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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

Os Não-Reconciliados, de Jean-Marie Straub

Cineasta apresenta um olhar dialético sobre o pós-guerra alemão

Os Não-Reconciliados (Nicht versöhnt oder Es hilft nur Gewalt, wo Gewalt herrscht, 1965) é um filme dirigido pelo cineasta francês Jean-Marie Straub (1933-2022).

O filme tem um subtítulo “Só a violência pode servir onde a violência reina”, uma frase da personagem Joana, da peça A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht.

Tem como base o romance Bilhar às nove e meia do escritor alemão Heinrich Böll, expoente da literatura do país no pós-guerra e ele mesmo um ex-soldado, tendo servido em frentes de batalha na França, na Polônia e na União Soviética.

O roteiro foi uma colaboração entre Böll, Straub e sua esposa Danièle Huillet (1936-2006). O casal desenvolveu uma parceria que rendeu dezenas de filmes, em sua maioria curta e média metragens, mas todos com uma abordagem política radicalmente de esquerda.

No Brasil, algumas dessas obras podem ser assistidas no YouTube ou em plataformas de streaming dedicadas a filmes de arte.

Os Não-Reconciliados tem como foco a Alemanha Ocidental, 20 anos depois do fim da II Guerra Mundial. Ele acompanha três gerações de uma família de classe média entre 1910 e 1960, através de flashbacks e diálogos.

Seu objetivo é discutir, pela experiência dos personagens, a história alemã do período. Começa com a I Guerra Mundial, quando a jovem matriarca Joana (Danièlle Huillet) afronta o Segundo Reich. “É a tolice do imperador”, diz sobre a guerra.

O Terceiro Reich é uma experiência de reminiscências ambíguas. Como uma família alemã – um país – se lembra do nazismo? É um tema pouco explorado no cinema e que vale a pena conhecer.

O filme nos convida a preencher as lacunas. Os personagens falam de pessoas mortas, daqueles que abraçaram o nazismo, dos que resistiram, das perseguições e dos que sobreviveram.

A narrativa avança até a década de 1960, quando os personagens assumem um tom de cinismo. Nazistas e opositores convivem lado a lado em uma aparência de ordem e de unidade nacional cheia de furos e remendos. A violência, como na citação à peça de Brecht, está impregnada no cotidiano.

O período pós-guerra na Alemanha Ocidental vai de 1949 a 1963, quando o país foi liderado pelo chanceler Konrad Adenauer, o primeiro civil não ligado ao partido nazista.

Fundador da democracia cristã, reconstruiu o país para ser um aliado do imperialismo estadunidense e exerceu seu papel com lealdade durante a Guerra Fria. Restabeleceu o exército alemão, uma das contradições que o enredo discute.

Jean-Marie Straub é um cineasta que dedicou sua vida à realização de filmes políticos sobre a Europa. Seu maior legado é a forma com a qual construiu suas narrativas. Ele aplicou e testou as técnicas do teatro épico, teorizadas por Bertolt Brecht.

Através do trabalho do ator e dos diálogos, procurou romper com as noções de realismo que costumamos associar às convenções narrativas do cinema mais comercial.

Ele sabia que essas noções são apenas a manifestação do ponto de vista estético da burguesia sobre o que significa representar a realidade. Ou seja, uma forma limitada de representação que apaga a luta de classes.

O teatro épico tem origem nas formas populares da Idade Média. Com os movimentos modernistas, retornou nas peças de Ibsen e Strindberg na virada do século, por exemplo, que criticavam a visão burguesa do mundo

Brecht, em meio ao caos da República de Weimar e da ascensão do nazismo, teorizou sobre o teatro dialético e escreveu peças que tinham como público a classe trabalhadora alemã ligada ao Partido Comunista, em um momento em que a Revolução Russa ainda era um episódio fresco para todos os europeus. Após a Guerra, ele voltou para a Alemanha e fundou a companhia Berliner Ensemble, em Berlim Oriental.

Esse é o caldo cultural e a síntese que assistimos em Os Não-Reconciliados. O cinema de Straub-Huillet segue a direção épica e dialética de seus antecessores. Não é um filme muito fácil. Mas é uma obra instigante para quem busca uma reflexão sobre a Alemanha Ocidental do pós-guerra.

Na forma, segue um fio de cronologia e seus diálogos, na maior parte, não levam a ação para frente, como em um filme mais convencional. Ele não aplica as regras aristotélicas, cooptadas pela narrativa hegemônica.

Diálogos e gestos estão ali para apresentar o tema político, ou seja, as enormes contradições da sociedade alemã dentro da estrutura capitalista que a castigou e ainda castiga. É um exercício estético sobre materialismo histórico e dialético.

Visa a reflexão, o debate, o distanciamento e não a fruição inconsequente e descartável. A reconciliação no título se refere a um dogma católico. O sacramento da reconciliação está ligado à confissão e ao perdão dos pecados, uma metáfora. Os não-reconciliados, neste caso, são o povo alemão. É um cinema de vanguarda e uma obra-prima.

(PS: o tema da reconciliação no filme de Straub será retomado, em 1991, pelo cineasta dinamarquês Lars von Trier no filme Europa).

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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