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José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

Louco e, ademais, não sabe o que está fazendo

É uma devastação da indústria, que tem o objetivo, inconfessável (mesmo para Milei), de liquidar o setor e transformar o país

O PIB (Produto Interno Bruto) da Argentina caiu 1,7% no 2º trimestre de 2024 em relação ao mesmo período de 2023, segundo relatório do Instituto de Censos e Estatísticas (Indec), divulgado na semana passada. A queda foi puxada principalmente pelos setores de Construção (-22,2%), Indústria de Transformação (-17,4%) e Comércio Atacadista, Varejista e Reparos (-15,7%). O setor de Agricultura, Pecuária, Caça e Silvicultura apresentou a maior alta: 81,2%. Na comparação com o 1º trimestre deste ano, o PIB recuou1,7%.

Do ponto de vista da demanda, o recuo mais avassalador foi o da Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF, parcela do PIB que é reinvestido na produção), que caiu 29,4% no segundo trimestre de 2024, em relação ao mesmo período do ano passado. A queda se deveu ao recuo de 30,7% nos investimentos do setor de Construção, recuo de 3,3% de Outras Construções, diminuição de 30,2% no setor de Máquinas e Equipamentos e pela queda de 39,6% em Equipamentos de Transporte.

O PIB da Argentina vem de três trimestres seguidos de queda. Formalmente, uma economia entra em recessão quando completa dois trimestres seguidos de queda no PIB. Normalmente, quando se provoca uma recessão na economia, como no caso da Argentina, a inflação recua. Mas no acumulado de 12 meses a inflação alcançou 236,4%. Somente em agosto os preços subiram 4,2%, que é a inflação anual do Brasil. Em 2024, até agosto a inflação no país soma alta de 94,8%. Ou seja, mesmo com a brutal recessão, provocada pela queda dramática do poder aquisitivo de trabalhadores e aposentados, e da quebradeira de empresas mais ligadas ao mercado interno, a inflação na Argentina não cedeu significativamente. O que mostra que o diagnóstico do governo Milei, de uma suposta centralidade da inflação de demanda na economia, é totalmente furado.

Os setores empresariais que apoiaram Milei, porque sabiam que ele iria tentar destruir a organização dos trabalhadores e liquidar o poder aquisito da população (como fez), já se mostram incomodados. O governo não está conseguindo, apesar de tudo, reduzir a inflação e, na expressão dos porta-vozes empresariais, “realizar ações com foco no longo prazo”. O fato de que Milei não tenha reduzido a inflação até o momento, apesar de todo o estrago feito na indústria, no mercado interno, e na malha de pequenos, médios e até grandes negócios, o coloca em situação difícil também com a população. Afinal, uma parte dos argentinos até aceitou o remédio amargo do “plano motoserra”, porque viu aí a possibilidade de redução de uma inflação destruidora e crescente. O plano até agora ofereceu aos argentinos o pior dos mundos: destruiu empregos, provocou o aumento exponencial da fome e da pobreza, e mesmo assim a inflação não cedeu.

Nos números do PIB, a evolução do valor agregado dos diferentes setores da economia, no segundo trimestre, demonstram qual papel Javier Milei veio cumprir na realidade argentina. Enquanto o Setor de Agricultura, Pecuária e Caça, cresceu 81% no período, em relação a igual período do ano passado, a indústria recuou 17,4%, como vimos. O setor de Eletricidade, Gás e Água, aumentou meros 2,8% no segundo trimestre do ano em relação ao mesmo período de 2023. Construção Civil apresentou uma queda de 22,2% no mesmo período. O setor de Comércio apresentou uma queda de 15,7% e Hotéis e Restaurantes, um recuo de 4,5%.

É uma devastação da indústria, que tem o objetivo, inconfessável (mesmo para Milei), de liquidar o setor e transformar o país, em definitivo, em uma plataforma de produção de grãos e commodities minerais, dependente absoluta das importações industriais. O governo Milei tem engambelado parte da população com a ideia de que déficit fiscal zero iria controlar a inflação, atrair investimentos internacionais e incentivar inversões privadas de capital nacional. Como vimos, a taxa de investimento caiu 29,4% em um ano, resultado que mostra que a política que está sendo operada é de guerra contra a produção de riquezas e os salários. Qual o capitalista estrangeiro vai querer investir em setores da economia argentina voltados para um mercado interno que está sendo desmantelado? Os grandes capitais internacionais querem liberdade e desregulamentação da economia para se lambuzar nos imensos recursos naturais do país: grandes extensões de terras férteis, chumbo, zinco, estanho, cobre e minério de ferro.

A natureza do ajuste econômico da Argentina é revelada pelos dados concretos: em nome da queda da inflação, desde o começo do governo, os preços de água, gás, luz e transporte público estão bem mais altos, o poder aquisitivo de salários e aposentadorias despencou, juntamente com a produção industrial e os serviços. Além disso, segundo o Observatório da Dívida Social Argentina da Universidade Católica Argentina (ODSA-UCA), nos primeiros seis meses deste ano, o índice de pobreza subiu para 55,5% da população e o índice de indigência para 17,5%.

Pelos critérios do Indec, os indigentes são aqueles que não dispõem de renda suficiente para adquirir a quantidade mínima de alimentos para a subsistência. Pelos cálculos são cerca de 8,1 milhões de argentinos na condição de indigência. De acordo com relatório da Bolsa de Comércio de Rosário, o consumo médio de carne bovina na Argentina (quinto maior produtor do mundo), deverá ser de 44,8 quilos por habitante neste ano, o menor volume desde 1920, mais de um século atrás.

Ao mesmo tempo em que trabalha para constituir uma maioria de pobres e indigentes, o presidente da República vive em um universo paralelo, no qual alimenta firme convicção que o problema da Argentina começou há um século, quando o país teria “abandonado” o modelo capitalista para aderir as ideias do “socialismo” ou do “coletivismo”. Essa versão nada tem a ver com a realidade, como mostram os historiadores argentinos: há um século a Argentina amargava uma crise dramática decorrente justamente do seu atraso econômico. Não por acaso, o movimento peronista, que tem grande base popular no país por ter realizado importantes mudanças em favor da população, faz sucesso a partir da década de 1940. Mas o que significa a “simples realidade” comparada com as inabaláveis convicções de Milei?

Como acredita que o problema da economia argentina é “moral” e não econômico, Milei ainda não desistiu do projeto de dolarização da economia, que se viabilizado, seria uma completa loucura, de consequências imprevisíveis para o país e região. Como é conhecido, atualmente na América Latina três países têm economias dolarizadas: Equador, El Salvador e Panamá. O PIB somado destes três países, equivale a cerca de 23% do PIB da Argentina. Os três países, juntos, possuem população equivalente a 6,2% da população da Argentina (45,2 milhões). Fora da América Latina, dois países mantêm o dólar como moeda: Zimbabwe (África) e Estados Federados da Micronésia (Oceania), que na prática é uma colônia dos EUA, com 112.000 habitantes.

A Argentina é a terceira economia da América Latina, atrás apenas do Brasil e do México. Propor renunciar à moeda nacional, instrumento fundamental de macroeconomia, em favor da moeda do país mais imperialista do mundo, será o caminho mais curto para o inferno. A tendência global vai exatamente na direção contrária. Os países do Brics, por exemplo, estão gradativamente construindo as condições para realizarem transações entre si, com suas próprias moedas e não mais com dólar. Fica cada vez mais evidente a importância dos membros do chamado Sul global, terem independência das moedas dos países ricos, e dos bancos dos países imperialistas, Banco Mundial, FMI e outros.

Quanto mais tempo durar o atual governo da Argentina, maior será o estrago que provocará. Estamos assistindo, por exemplo, a rápida inviabilização da indústria. Praticamente todos os países do mundo têm políticas industriais, especialmente os países ricos, tão idolatrados por Milei. Esses países, inclusive, privilegiam mecanismos como subvenções a setores da indústria, financiamento público subsidiado e apoio estatal em geral, inclusive proibindo empresas mundiais de atuarem em seus territórios. Nos países subdesenvolvidos, os mecanismos mais comuns de incentivo à indústria têm sido a aplicação de tarifas de importação, empréstimos públicos e políticas de incentivos fiscais.

Por acreditar em fábulas, o governo argentino é contra todos esses mecanismos de incentivo à produção industrial nacional, deixando tudo sob responsabilidade da “indiscutível eficiência do mercado”. Alguns populares na Argentina, quando entrevistados, costumam responder que Milei “está loco, pero lo sabe” (é louco, mas sabe). Acho que não demorará muito para a maioria perceber que Milei de fato é um louco; só que, além disso, não tem a menor ideia do que está fazendo.

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