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Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

O Teatro Popular de Ariano Suassuna

"Foi certamente no teatro, reproduzindo jogos de cena dos espetáculos populares nordestinos e temas da dramaturgia universal, que se tornou conhecido do público"

SIMÃO PEDRO

Há um ócio criador;

Há outro ócio danado,

Há uma preguiça com asas,

Outra com chifres e rabo!

MIGUEL ARCANJO

Há uma preguiça de Deus,

E outra do Diabo!

MANUEL CARPINTEIRO

E então, a moral é essa,

Que mostremos à porfia!

SIMÃO PEDRO

Viva a preguiça de Deus

Que criou a harmonia,

Que criou o mundo e a vida,

Que criou tudo o que cria!

MANUEL CARPINTEIRO

Viva o ócio dos Poetas

Que tece a beleza e fia!

 

No próximo dia 23 de Julho vai completar dez anos da morte do romancista, dramaturgo e artista plástico Ariano Vilar Suassuna (1927/2014). Morreu aos oitenta e sete anos de idade, pouco depois de concluir um romance ao qual havia se dedicado havia mais de vinte anos, chamado “O Romance de Dom Panteiro no Palco dos Pescadores”.

Transitou pela literatura e pelas artes plásticas. Foi professor da Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco) onde lecionou diversas disciplinas ligadas à arte e cultura. Mas foi certamente no teatro, reproduzindo jogos de cena dos espetáculos populares nordestinos e temas da dramaturgia universal, que se tornou conhecido do público e consagrou-se como um dos principais artistas da história do teatro do Brasil.

A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947) redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da Faculdade de Recife.

Depois de formado, Suassuna retornou à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária subsequente.

Deixando de lado a tragédia, o escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).

As aventuras de João Grilo e Chicó são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro.

O humor com que encaramos os problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço, envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.

Estas características seriam posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular, ou mais especificamente a cultura nordestina, com a sua literatura de cordel, o seu teatro de mamelungos (aqueles conhecidos fantoches de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas que dão voz e movimento aos bonecos) e ilustrações de xilografia.

Os folhetos populares de literatura nordestina já congregavam em si diferentes expressões artísticas. Deles constam a poesia, o teatro e as imagens de xilografia que ilustram as suas capas. Também agregam dentro de si a música, já que encerram espetáculos populares, encenados ao ar livre, com acompanhamento musical – o musical dos cantos e músicas que acompanham a leitura ou a recitação do texto.

Também estavam relacionados à história oral e às primeiras formas de sedimentação e divulgação dessas histórias do povo, contadas pela primeira vez na forma impressa em pequenos folhetos, expostos para venda pendurados em cordas, barbantes ou “cordéis”, atraindo o nome “Literatura de cordel”.

A Farsa da Boa Preguiça

Quando perguntado qual era a sua peça de teatro favorita, Suassuna respondia sem pestanejar: “A Farsa da Boa Preguiça”. Trata—se de uma comédia encenada pela primeira vez em 1961, no Recife, quando o escritor já havia se consagrado nacionalmente com o seu “Auto da Compadecida” (1955). Ambas as peças retomam o tema do trovadorismo português representado pelo “Auto da Barca do Inferno” (1517) de Gil Vicente.

Nessas obras, as ações humanas são acompanhadas pelo escrutínio de Deus e do Diabo, e seu séquitos de anjos, que irão, ao final, dar à cada personagem o fim a que fizeram jus pelos seus atos em vida. O conhecido “Julgamento Final” que irá levar os bons ao céu e os maus ao inferno segue uma convenção que advém do teatro antigo conhecida como “licença” ou “moralidade”. Por essa convenção, no fim da história, o autor podia dar a sua opinião sobre o que acontecera no palco, o que poderíamos chamar de “lição da história” ou “moral da história”.

A “Farsa da Boa Preguiça” foi acusada ao seu tempo pelos intelectuais de esquerda como uma apologia reacionária à preguiça.

A peça data dos anos 1960, momento em que o pensamento de esquerda era majoritário nos meios intelectuais e artísticos do país. De acordo com esses intelectuais, o autor de peça estaria aconselhando o povo ao conformismo, à renúncia ao trabalho duro, e, supostamente, fazendo com isso o jogo daqueles que desejavam entravar a luta de emancipação dos trabalhadores e camponeses.

No prefácio da obra, o escritor desmonta esta interpretação artificial, típica da forma unilateral do militante ver a arte, seja na década de 1960, seja hoje através do identitarismo.

Diz Suassuna:

“Na verdade, o elogio que eu queria fazer na peça era, em primeiro lugar, o do ócio criador do Poeta. (…) Em segundo lugar, o que eu desejava ressaltar, na peça, era a diferença da visão inicial que nós, povos morenos e magros, temos do Mundo e da vida, em face da tal “cosmovisão” dos povos nórdicos. Não escondo que tenho um certo ‘preconceito de raça ao contrário’. Sempre olhei, meio desconfiado, para essa galegada que, de vez em quando, nos aparece por aqui, como quem não quer nada, que entra sem cerimônia e vai mandando para fora amostras de nossa terras, de nossas pedras, do subsolo, da água e até do ar, sem que os generosos Brasileiros estranhem nada. (…) Ora, na minha arbitrária e talvez torcida opinião de brasileiro que nunca saiu de sua terra, esses Povos nórdicos são raça com mais vocação para burro de carga que conheço. Nós, Povos castanhos do mundo, sabemos, ao contrário, que o único verdadeiro objetivo do Trabalho é a Preguiça que ele proporciona depois, e na qual podemos nos entregar à alegria do único trabalho verdadeiramente digno, o trabalho criador, livre e gratuito”.

Esta oposição entre a visão social de mundo dos “povos mestiços” e dos “povos nórdicos” é representada na peça pelo poeta popular Joaquim Simão e o ricaço Aderaldo. O primeiro de coração bom, mas que rejeita sempre que pode o trabalho duro para se dedicar ao descanso e ao fazer poesia, ao ócio criador. E o segundo, dedicado ao trabalho predatório de explorar os outros e acumular riquezas.

Dentro deste embate, participam como coadjuvantes anjos e demônios que irão tentar os personagens para o bem e para o mal.

Joaquim Simão, predisposto ao bem, acaba sendo seduzido por Clarabela, esposa infiel de Aderaldo; comete uma falta, mas se arrepende sinceramente depois. Já Aderaldo e sua mulher Clarabela, ambos convertidos ao ateísmo materialista, são ao final da peça confrontados pelos demônios que irão cobrar o preço por suas más condutas em vida.

Através do “trabalho”, acumularam o dinheiro. Desprezaram os pobres e miseráveis que lhes pediram esmola ou um pedaço de pão.

E ao final, são desafiados pelos anjos do mau: irão para o inferno se dentro de sete horas não encontrarem alguém que rezasse por suas almas o “pai nosso” e o “ave maria”.

Neste momento, todo o dinheiro que conquistaram não lhes serviu para a salvação da alma. Apenas a caridade do bom Simão e sua mulher Neivinha, através de um ato puro de amor, sem busca de benefícios, salvam os ricos. Ambos conseguem fazer a reza dentro do tempo estipulado pelo Diabo, e garantem que os vilões passem do inferno ao purgatório.

Talvez poderíamos aqui incluir um novo ponto de diferenciação entre nós, “povos mestiços” e “povos nórdicos”, agora, no que diz respeito ao problema de Deus. Na tradição estrangeira, de tipo puritana, prevalece o castigo sem a possibilidade do perdão divino. E, na nossa tradição, que é o que vemos na peça, prevalece a justiça não dissociada do amor e da infinita misericórdia de Deus.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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