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Coluna

Como a burguesia enxerga a cultura

Novo comercial da Apple mostra descaso com as artes e explica deserto cultural que habitamos

Nunca na história da humanidade foi tão fácil produzir um livro, uma música ou um filme como é atualmente. As ferramentas que temos a disposição colocam nas mãos de um compositor habilidoso toda uma orquestra digital. O músico consegue ouvir e iterar sobre sua peça em seu computador pessoal, sem precisar pensar no custo de alugar uma orquestra com dezenas de músicos. Isso significa que a música digital superou completamente a apresentação musical ao vivo, realizada por instrumentistas humanos?

Longe disso. Qualquer um que já viu uma apresentação ao vivo sabe que não há comparação. A expressão do artista por meio de seu instrumento musical é parte da obra tanto quanto a composição.

Mas não é essa a forma como a burguesia enxerga a cultura. Para eles, é mais um produto. Essa semana, o maior monopólio do mundo, a norte-americana Apple, anunciou o lançamento de seu “novo” produto. Mais uma edição do iPad, sua famosa tablet, que pouco tem de diferente em relação a seus antecessores, a não ser por um modesto ganho de desempenho com seu novo chip e por ser mais fino e leve.

Na realidade, o aparelho é tão fino que é mais fino que qualquer outro dispositivo já lançado pela empresa. Essa finura inspirou o comercial do produto no qual uma prensa hidráulica esmaga instrumentos musicais, obras de arte e outros objetos até que desapareçam por completo entre os dois enormes blocos de aço. Quando eles se afastam novamente, surge apenas o iPad em seu lugar.

Para os publicitários da Apple, porta-vozes da ideologia burguesa, o monolito de metal de vidro substitui séculos de desenvolvimento cultural humano. Todos aqueles objetos aos quais mestres da arte dedicaram toda sua vida a dominar. Tudo é substituído por uma tela que esfregamos freneticamente com nossos dedos indicadores.

Podemos estar simplificando demais as coisas. Sim, é possível conectar um teclado musical ao iPad e produzir uma música. Sua caneta digital pode ser usada para desenhar como se fosse um lápis ou um pincel. Mas isso substitui os métodos tradicionais ao ponto de poderem ser esmagados por uma prensa hidráulica?

Apesar dos meios que temos para produzir arte atualmente, é notória a seca criativa que enfrentamos. Músicas, filmes, livros e jogos seguem fórmulas mecânicas, repetitivas que cansam até o mais ávido consumidor de enlatados. Não por acaso as plataformas de streaming estão vendo seus números caindo cada vez mais rapidamente.

Muitos artistas temem que serão substituídos pelo avanço da inteligência artificial. Os achatadores de cultura da Apple estão ansiosos por esse dia. Imaginem só produzirmos o próximo hit da Anitta com um mero click? Isso só é possível porque nossa criatividade foi achatada e pode ser estatisticamente previstas por esse maquinário estocástico que chamamos de “inteligência artificial”.

Temos um universo infinito de possibilidades à nossa posição, mas nos encurralamos num canto escuro e restrito. Um beco. É curioso, mas sem as limitações dos instrumentos musicais reais, dos pincéis, do papel, da tela, podemos produzir tudo, mas não produzimos nada.

A limitação, finalmente, é amiga inseparável da criatividade.

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