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Oprimidos e opressores

Sobre o identitarismo e a concepção marxista da opressão

Uma polêmica com Valter Pomar

Respondendo à nossa réplica à sua crítica sobre a posição do PCO a respeito da queima da estátua de Borba Gato, Valter Pomar comprovou o que já havíamos constatado no artigo anterior, isto é, sua defesa, mesmo que inconsciente, do imperialismo contra o povo brasileiro.

A fim de rebater nossa posição contrária ao ataque cego a Borba Gato e aos bandeirantes, o dirigente petista procura traçar paralelos um tanto incompatíveis e anacrônicos.

Em seu texto “O PCO, Marx e os bandeirantes”, diz que, segundo nossa lógica, deveríamos “defender a construção de estátuas para Médici, que assinou decreto alargando nosso ‘mar territorial’ para 200 milhas marítimas”.

Ou seja, Pomar compara a triplicação do território brasileiro realizada graças aos bandeirantes a uma medida governamental mais simbólica do que concreta feita por um regime fantoche do imperialismo! Médici não peitou o imperialismo, não impediu que o imperialismo atacasse a soberania brasileira. Seu decreto não surtiu efeito nenhum e não foi levado a sério nem mesmo pela ditadura militar. Se, pelo contrário, fosse levado às últimas consequências, impedindo o imperialismo de invadir o território marítimo brasileiro, certamente teria sido uma medida progressista e deveria ser defendida.

Mas tanto Médici como todo o regime militar não desempenharam nenhum papel progressista para o País. Pelo contrário, a ditadura foi um retrocesso para o Brasil e seu povo. Um retrocesso imposto pelo imperialismo.

O PCO, por exemplo, ficou ao lado da ditadura militar argentina, genocida, de aspectos fascistas, quando ela entrou em guerra contra o imperialismo britânico pelas Malvinas. Foi uma medida progressista da criminosa ditadura argentina, o que levou o povo e a própria esquerda argentina a apoiar os militares contra os britânicos. Mas a ditadura militar argentina não levou a luta contra o imperialismo até às últimas consequências e capitulou diante do imperialismo, entregando as Malvinas e a soberania nacional.

Trótski, certa vez, citou uma possibilidade hipotética de guerra entre o mesmo imperialismo britânico e o governo Vargas. Aqui vivíamos em uma ditadura caracterizada pelo próprio Trótski como “semifascista”. Ele disse que os revolucionários deveriam lutar ao lado de Vargas contra o imperialismo. Vargas, inclusive, torturou e matou militantes comunistas e submeteu por completo o movimento operário ao seu regime. Por outro lado, foi o governo que, até hoje, mais industrializou o Brasil e é reivindicado por inúmeros setores da esquerda nacional por causa disso. Se os identitários (ou seja, o imperialismo) iniciassem uma campanha para apagar a memória dos governos de Getúlio Vargas devido aos seus crimes, Pomar estaria ao lado dos identitários (isto é, do imperialismo)?

Pomar, então, nos questiona a respeito de três outras situações históricas: estaríamos do lado das legiões romanas ou de Espártaco? Do lado dos nobres ou dos camponeses alemães da Idade Média? Do lado das forças de Custer ou dos índios Sioux nos EUA? Tudo isso, indicando que, se fôssemos coerentes com nossa posição a respeito dos bandeirantes, deveríamos estar do lado dos opressores.

Os dois primeiros exemplos tratam de situações em que os opressores eram classes em decadência, portanto reacionárias. E os oprimidos, classes em ascensão, revolucionárias. Os escravos romanos e os camponeses alemães levantaram-se sob a bandeira do progresso e como um sintoma deste. Sua luta não representava a tentativa de girar para trás a roda da história, mas o oposto. Por sua vez, os Sioux eram representantes de uma sociedade inferior do ponto de vista do desenvolvimento histórico em relação ao capitalismo em expansão representado pelas forças do general Custer. Nesse sentido, o cenário geral do sistema capitalista de 1876 ─ quando se deu a Batalha de Little Bighorn ─ era de progresso. A posição de um revolucionário marxista, nesse conflito, seria condenar a tentativa de massacrar os indígenas, defendendo os direitos destes. Até porque, para o desenvolvimento das forças produtivas naquele estágio da humanidade, não seria necessário nenhum banho de sangue.

Tal como nos dias atuais, quando Evo Morales tentou industrializar a Bolívia explorando os recursos naturais do país, ou a mesma coisa com relação à usina de Belo Monte, a posição progressista é ser favorável à industrialização, de maneira civilizada, entrando em um acordo com os indígenas, tratando de modo decente e digno aquela sociedade.

O que o PCO defende, portanto, não é “tudo aquilo” que o capitalismo ou os bandeirantes fizeram, mas sim o caráter progressista de sua obra, como foi o caso da expansão territorial do Brasil ou mesmo a própria colonização do País, bem como as colonizações em geral na época de crescimento do capitalismo, tal como fez Marx.

Colhi de Pomar 17 citações de meu sobrenome (Vasco). Mas ele também poderia ter feito referência em seus questionamentos sobre o “oprimido” e o “opressor” a outro Vasco, o da Gama. Caso nos perguntasse se seríamos a favor dos colonizadores portugueses ou dos indianos, teríamos dito: dos colonizadores. Afinal, a descoberta da Índia foi justamente um dos mais valiosos progressos da época dos descobrimentos. Isso, como é possível depreender deste artigo, não significa uma defesa dos métodos desnecessários utilizados pelos portugueses em sua colonização, nem dos ingleses ou dos franceses, mas sim o apoio naquilo que era necessário para o desenvolvimento do capitalismo, isto é, da humanidade.

Segundo Pomar, essa é uma “lógica que um conhecido camarada russo chamava de ‘objetivismo’: começava-se reconhecendo o papel progressista do capitalismo e terminava-se fazendo a apologia do capitalismo”. Como lembrou o companheiro Rui Costa Pimenta, se fosse assim, então o próprio “camarada russo” (ou seja, Lênin), seria um apologista do capitalismo, pois ele reconhecia o papel progressista desse sistema econômico, bem como todos os marxistas russos.

Logo, nosso interlocutor insiste na ideia de que o capitalismo não teria tido um caráter progressista. Sobre nossa citação de Marx a respeito do progresso que foi a anexação norte-americana da Califórnia, ele afirma: “nem eu, nem Vasco, nem ninguém saberia dizer o que teria acontecido se a história tivesse sido diferente.” Ora, certamente se ela se mantivesse controlada pelo México não se tornaria o 5° PIB do mundo, pois, sendo assim, quem teria desenvolvido aquela região seria o México. Mas como ele faria isso, sendo um país atrasado, dominado pelo imperialismo? A Califórnia só é o que é hoje devido ao desenvolvimento levado pelo capitalismo norte-americano, assim como o Brasil só é o que é devido à colonização portuguesa e à expansão bandeirante.

A posição do “oprimido vs opressor”, do modo como é apresentada por Pomar, é uma posição moralista. Se fosse assim, um homem passando fome não poderia matar um porco para comer, porque, em relação ao porco, o homem é o opressor e o porco em relação ao homem é o oprimido. Ou não se poderia cortar uma árvore para fazer uma casa, porque o meio ambiente estaria sendo oprimido.

A posição de Pomar também é idealista, pois ele gostaria de ter evitado que o Brasil fosse colonizado, que o mundo todo fosse colonizado, que as sociedades romana e grega fossem escravocratas e, em última instância, que a propriedade privada e, assim, a luta de classes, tivesse surgido. Nessa lógica, em nome da luta moral de tomar o lado dos oprimidos, estaríamos vivendo no comunismo primitivo!

Ao invés da posição moralista de “oprimido vs opressor”, uma posição marxista, ou seja, materialista, é aquela que está do lado das forças progressistas economicamente contra as forças economicamente reacionárias.

Robespierre era o “opressor” dos camponeses que se revoltaram contra a ditadura jacobina. Os bolcheviques eram os “opressores” dos revoltosos de Cronstadt ou dos camponeses de Makhno. Mas ambos, os jacobinos e os bolcheviques, representavam o progresso econômico e, portanto, social, enquanto que seus opositores estavam, concretamente, a serviço da restauração conservadora, do retrocesso econômico e social.

Logo, estar do lado dos “oprimidos”, nesses dois casos, seria defender o retrocesso social. Seria uma posição reacionária.

De acordo com Pomar, “ao invés de fazer a apologia do passado, é preciso fazer a crítica”. Mas, para ele, a “crítica” do passado é apagar esse passado. Nisso, não se diferencia dos identitários.

Em sua época, a colonização portuguesa do Brasil foi um progresso. Hoje, a colonização estrangeira do Brasil é um retrocesso. Mas é justamente a isso que servem os identitários: em nome do combate ao progresso histórico, tachado de retrocesso, tentam impor o retrocesso ao Brasil de hoje.

O PCO, portanto, não é contra a destruição de estátuas porque defende a violência dos bandeirantes contra os índios. Mas os que defendem a destruição das estátuas, como Pomar e os identitários, dizem publicamente que esse capítulo da história do Brasil é “mau” e deve ser apagado.

Afinal, este é um dos mais nefastos aspectos do identitarismo: apagar a história da humanidade, que é uma história de progresso (apesar de suas contradições naturais) e de desenvolvimento das forças produtivas, para reconstruí-la do zero, à imagem e semelhança dos identitários. Uma ideologia de características religiosas e idealistas, promovida, contudo, para finalidades integralmente materialistas: desviar o foco da luta dos trabalhadores e demais oprimidos por sua verdadeira emancipação, a do jugo do capitalismo e do imperialismo, para conservar esse regime putrefato.

O identitarismo é fruto de dois dos mais importantes fenômenos do capitalismo moderno: o imperialismo e a crise das direções da esquerda. Lênin e Trótski analisaram e combateram esses fenômenos em sua época. Não viveram para conhecer o identitarismo. Analisá-lo e combatê-lo é um dos principais desafios teóricos dos revolucionários de nossa época.

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