No artigo É crise de percepção, publicado no dia 17 de março pelo Brasil 247, o sociólogo Oliveiros Marques se aventura a explicar a crise atual do na qual o governo Lula está metido. Ao analisar as pesquisas recentes de aprovação do governo federal, Marques inicia seu texto polemizado com um “amigo” que permanece não identificado.
“Esse amigo, que é uma referência para mim na análise da política como ela acontece de fato, ao me enviar informações sobre o estudo da FGV, comentou: ‘os dados são impressionantes. Pode ser um grande caso de ingratidão’.”
O tal “amigo” debocha da fome do povo brasileiro. Ao indicar que aqueles que desaprovam o governo, seriam “ingratos”, o “amigo” considera que é razoável que mais de 25% da população sobreviva de uma esmola do Estado, que é o Bolsa Família. E que mesmo essa esmola está sob risco de acabar.
Não há nada de “ingratidão”. É tudo muito mais simples: o povo está insatisfeito porque a vida não está boa. E o governo tem sua parcela de responsabilidade sobre isso.
Por trás da ideia de que o povo deveria ser “grato”, está que o governo Lula seria melhor que o governo de Jair Bolsonaro (PL), por exemplo, porque teria tomado algumas medidas mais populares. Isso, no entanto, não é o que se espera de um governo popular. Um governo que esteja realmente se esforçando para atender às demandas populares se propõe a enfrentar os banqueiros e latifundiários e tomar medidas de impacto, que modifiquem de maneira significativa a vida do povo, naturalmente, para melhor. Esse não é o sentido da política do governo.
Sem nenhuma medida para combater de fato o desemprego, a fome, a alta dos preços, a falta de moradia, a destruição na saúde e o sucateamento das escolas, não há como falar em gratidão. O povo ficará revoltado, e com muita razão.
Em seu texto, no entanto, Marques não é capaz de fazer essa crítica ao “amigo”. Em vez disso, diz que:
“Os números são muito positivos, é verdade. Segundo o estudo, os trabalhadores e trabalhadoras que ganham um salário mais baixo – e que representam metade da força de trabalho empregada hoje no Brasil – tiveram um ganho de 10,7% em sua renda, um aumento real significativo, acima da inflação do período. (…) Acredito até que seja possível pensar em uma ingratidão ‘culposa’, tomando emprestada a expressão jurídica. Os brasileiros e brasileiras que não avaliam positivamente o governo Lula, apesar de terem ganhos em suas rendas, não o fazem deliberadamente.”
É difícil até diferenciar o que diz Marques e o que diz o seu “amigo”. Chame de “ingratidão” ou “ingratidão culposa”, o autor reproduz, em essência, a mesma ideia de seu amigo, que, por sua vez, é a mesma ideia repetida pelos marqueteiros do Partido dos Trabalhadores (PT). Isto é, que tudo vai muito bem, obrigado.
Somos obrigados a discordar. O ministro da Fazenda Fernando Haddad, tem uma obsessão em aumentar os impostos sobre a população pobre. Ele teve a capacidade de impor uma taxa de 20% sobre bugigangas compradas na Internet – bugigangas estas que são compradas, obviamente, pelas camadas mais pobres da população. O mesmo Haddad anunciou um plano que irá estabelecer um inédito teto para o aumento do salário mínimo e um corte generalizado na assistência social.
Enquanto isso, os bancos seguem lucrando cada vez mais. A taxa de juros segue como uma das mais altas do mundo, mesmo sendo o presidente do Banco Central uma pessoa indicada pelo presidente da República. Apenas os últimos aumentos da taxa de juros provocarão em uma dívida tão grande do Estado com os banqueiros que fará com que o Plano Haddad será inútil para conter as despesas do governo. Isto é, cortará benefícios, mas não servirá para equilibrar as contas.
Há ainda o problema do custo de vida. A inflação, que é apresentada sob controle, vem aumentando sobre os produtos de maior necessidade. Por mais que o governo negue que isso seja de fato um problema, as iniciativas recentes do presidente Lula visando baixar o preço de alimentos são prova disso.
As coisas não vão nada bem. E, do jeito que estão, não vão melhorar.
A estagnação econômica é resultado de um problema político evidente: pressionado por todos os lados, Lula está adotando uma política de capitulação e de adaptação perante os seus inimigos.
Pressionado pelo Congresso Nacional, está dando ainda mais cargos para os parlamentares que lhe fazem oposição. Pressionado pelo bolsonarismo, deixa de lado o seu próprio programa e adota o programa impopular da direita nacional, representada pela rede Globo e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Pressionado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), renuncia a explorar o petróleo e condena o povo do Amapá ao atraso econômico.
Essas concessões não estão permitindo que o governo avance em nada. Pelo contrário, estão sendo vistas como um sinal de fraqueza pelos seus inimigos. É uma política de desmoralização. Quanto mais o governo ceder, mas a direita o irá pressionar.
O autor segue, então, sua tese de que há tão-somente um problema de “percepção”:
“Primeiro, há uma ausência de percepção de que os quatro anos anteriores ao governo do presidente Lula representaram um desmonte de políticas públicas, que trouxeram significativos impactos negativos em suas vidas. As pessoas não estão conseguindo ligar os pontos, identificar que muitos dos problemas que enfrentam hoje são fruto dessas medidas. (…) Parece que as ações vindas de Brasília se tornaram parte da paisagem, fazendo com que as pessoas não consigam construir uma relação de causa e efeito positiva em suas vidas. (…) Sabe aquele casamento em que uma taça se quebra? Pois bem, a relação precisa ser reconstruída. Talvez o governo esteja vivendo esse momento.”
Conforme já explicamos, não se pode pedir a um povo que vive desempregado “gratidão” porque recebeu outro benefício de menor importância. Mas não é apenas isso que Marques revela neste trecho.
O autor apresenta um cenário no qual as pessoas não reconheceriam o que o governo estaria fazendo por elas. A explicação mais simples é: o governo de fato não está fazendo o que deveria fazer.
O maior inimigo do Brasil é o imperialismo, que quer submeter os trabalhadores a um regime de escravidão, como está fazendo na Argentina de Javier Milei. O dever de um governo de esquerda é lutar contra isso, reagir a isso. E não se adaptar a essa política.
Se o governo Lula estivesse lutando, poderia até enfrentar problemas econômicos decorrentes da luta, mas não teria um problema de “percepção”. Basta olhar para a América do Sul.
Na Venezuela, há muitos problemas econômicos causados pelo imperialismo. No entanto, a população apoia o chavismo porque reconhece que o regime procura lutar contra a política criminosa do grande capital e que as dificuldades econômicas ocorrem como reação do imperialismo a essa insubordinação.
Passados dois anos, o PT não apresentou uma proposta séria para enfrentar os poderosos, nem muito menos convocou as massas para ser bem-sucedido. Não chamou a população para derrubar o antigo presidente do Banco Central, não chamou a população para atropelar as imposições do Ibama, não convocou um “revogaço” das medidas do governo golpista de Michel Temer, nem se propôs a cancelar a chamada dívida pública. Se continuar assim, cada vez menos a população o verá como um aliado.