Na última terça-feira (28), o Rio de Janeiro viveu a pior chacina de toda a sua história com a chamada Operação Contenção, deflagrada pelas polícias civil e militar nos complexos do Alemão e da Penha. Iniciada sob o pretexto de combater o Comando Vermelho (CV), o ataque rapidamente escalou para um confronto de proporções inéditas, deixando um rastro de destruição e morte que superou o infame Massacre de Carandiru de 1992.
Dados divulgados pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro na manhã de quarta-feira (29) dão conta de que mais de 130 pessoas foram assassinadas durante o ataque. Já a Polícia Civil afirma que nenhum dos mortos identificados pelo Instituto Médico Legal (IML) até o momento constam na denúncia do Ministério Público do estado (MP-RJ) que baseou a Operação Contenção. 30 sequer possuíam passagem pela polícia.
Segundo o governo Cláudio Castro (PL), os assassinatos foram consequência de confrontos entre membros do CV e agentes de repressão do Estado. A versão oficial diz que os “bandidos” estavam fortemente armados e chegaram a, inclusive, lançar bombas por meio de veículos aéreos não-tripulados (VANTs, ou drones, em inglês) contra as polícias.
No entanto, apuração exclusiva feita pelo Diário Causa Operária (DCO) junto aos moradores do Complexo do Alemão mostra que a história das autoridades fluminenses é uma farsa. Uma mentira contada para justificar a matança perpetrada contra os moradores da região.
Operação para matar
Dias após a chacina, este Diário entrevistou algumas moradoras da comunidade que presenciaram alguns dos crimes cometidos pelos policiais durante a Operação Contenção.
“Eles vieram para matar, eles não vieram para prender não. Os que foram presos é porque Deus não permitiu que eles matassem porque senão eles iam matar também”, disse uma das moradoras.
Um vídeo enviado a nossa equipe corrobora este relato. A gravação mostra uma fila de moradores sendo presos pela polícia, quando chega uma mulher e, aos prantos, lamenta a prisão de um conhecido. Diante desta cena, um dos policiais que estavam separando aqueles que foram detidos do resto da população disse: “tá vivo, po, tá vivo! Que sorte, ó, que sorte!”.
A moradora ainda explicou que os policias também entram e destroem suas casas. “Eles quebram tudo, comem as coisas da geladeira, quebram a televisão […] Eles esculacham, dão tapa na cara, comem o Danone das crianças”, contou.
As moradoras denunciaram que uma mulher chamada Gabrieli foi presa após se recusar a permitir a entrada de policiais em sua casa, que queriam utilizar o local para atirar contra os membros do CV.
“A menina foi presa ali em cima porque ela não queria que eles entrassem na casa dela. Eles invadiram a casa dela, levaram ela presa, forjaram ela, falaram que ela era envolvida com tráfico de droga. Tudo mentira, só porque ela não queria deixar que eles entrassem na casa”, disse uma das moradoras.
Outra relatou o mesmo:
“A Gabi [Gabrieli] foi presa por não querer deixar eles se abrigarem na casa dela porque ela estava com duas crianças e uma menina grávida. Ele [o policial] deu voz de prisão, fez ela passar a humilhação de descer onde ela foi nascida e criada algemada, praticamente pelada, de short muito curto e sutiã. Ele obrigou ela a descer andando algemada para todo mundo ver a vergonha que ela estava passando pelo simples fato de ela não querer abrigar eles dentro casa dela para eles darem tiro de dentro da casa dela com duas crianças dentro de casa. Eles bateram nela e deram voz de prisão.”
A legislação brasileira é clara quanto à ilegalidade da ação dos policiais. O artigo 5º, inciso XI da Constituição Federal determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Perseguição a quem denuncia
O medo da represália é constante. Várias moradoras relataram que possuem relutância em denunciar a ação da polícia, temendo retaliação:
“A favela não pode falar por causa da retaliação deles [dos policiais]. Porque se fomos abrir a boca [sobre] o que presenciamos… Vai todo mundo preso […] Nós temos medo de sair na rua e eles fazerem uma covardia com a gente”, disseram.
Na quarta-feira, Marcelo Auler, repórter da TV 247, entrevistou um morador da Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, que relatou ter visto policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) executarem um homem baleado e, depois, destruírem seu carro em represália.
O homem, identificado como Robson, contou ao jornalista Marcelo Auler que assistiu, da janela, a quatro policiais levarem um ferido para um beco e atirarem contra ele. “O cidadão estava vivo. O policial deu três passos para trás e deu cinco a seis tiros”, disse.
Após gritar “covardia” da janela, Robson afirmou ter sido abordado pelos agentes, que pediram seus documentos e tentaram entrar em sua casa. No dia seguinte, encontrou o carro totalmente destruído. “Furaram os pneus, quebraram com o fuzil. Os moradores disseram que foi o policial da Core, barbudo”, relatou.
O morador afirmou que pretende registrar ocorrência, mas também teme represálias. “Como é que você denuncia polícia para a polícia?”, questionou. Veja o vídeo abaixo:
Massacre na mata
Moradores do Complexo do Alemão relataram ao Diário Causa Operária que dezenas de pessoas foram executadas na região conhecida como “mata da Vacaria”, na Serra da Misericórdia, durante a Operação Contenção. Segundo os depoimentos, a chacina ocorreu após os policiais anunciarem que a área estava cercada e ordenarem que os suspeitos se rendessem — o que, de acordo com os relatos, foi seguido por uma sequência de execuções sumárias.
“Todo mundo se entregou e eles mataram”, disse uma moradora, descrevendo o episódio como “uma operação para eliminar e não para prender”. Outra acrescentou: “estamos nessa de que ‘vai ter operação’ há semanas. Aí ficamos apreensivos, ninguém dorme. Cinco da manhã já era tiroteio”.
Os moradores afirmam que, ao contrário do que diz a versão oficial do governo Cláudio Castro, não houve confronto na mata. “Não teve troca de tiro na área da mata, muito pouco. Eu moro do lado da mata, só teve tortura”, declarou uma das entrevistadas. Ao serem questionadas por nossa equipe, outras testemunhas denunciam que os policiais sabiam exatamente onde os alvos estavam escondidos. “Eles sabiam, eles tinham um plano. Quando tem troca de tiro, a gente reconhece as armas, mas dessa vez era só execução”, contou outra mulher, ao que outra testemunha acrescentou afirmando: “moramos dentro da comunidade e temos noção de qual é a arma que está atirando”.

Vídeos obtidos por este Diário mostram moradores gravando homens detidos pela polícia na área da mata:
Foto posteriores mostram, então, que todos foram executados:


Segundo uma das entrevistadas, sobreviventes relataram que foram enganados pela polícia:
“Relatos de pessoas que sobreviveram [dão conta de que] eles pediram: ‘a mata está cercada, podem se render, vamos prender todo mundo’. Se renderam! Por que não querem deixar o Ministério Público entrar no IML? Porque vão ver que é execução. E a perícia vai mostrar que foi execução.”
A moradora se refere ao fato de que, na quinta-feira (30), a Defensoria Pública do Rio de Janeiro foi impedida de acessar a sala de perícia e necropsia do IML, no Centro do Rio. A entrada dos agentes só foi autorizada até o pátio e outras áreas do prédio, sem permissão para acompanhar os exames.
Sinais claros de tortura
À equipe do DCO, uma das moradoras denunciou que seu vizinho foi torturado e executado pela polícia após se render:
“No Brasil, não tem pena de morte, mas o Cláudio Castro assinou a pena de morte. Muitos dos meninos estavam rendidos e tinham se entregado. Temos provas de um, do meu vizinho. Ele se entregou, falou ‘estou me entregando, já estou algemado, vou parar de falar’, e nós achamos ele na manhã de quarta-feira torturado, com [marcas de] faca, queimadura e sem o tampão da cabeça.”
As moradoras também descreveram a cena dos corpos recolhidos após a operação. “Os mais de 90 corpos que estendemos na praça, todos tinham sinal de tortura. Tiro não dá bolha de queimadura, não arranca a pele, não rasga a pessoa de fora a fora, não joga granada dentro da barriga de ninguém”, relatou uma delas.
A entrevistada ainda desmentiu a alegação de que os membros do CV estavam bombardeando os agentes de repressão do estado utilizando VANTs, algo amplamente divulgado pela imprensa burguesa.
“As bombas que estavam caindo de drones eram deles [os policiais]. Os bandidos não tiveram nem tempo de dar tiro, que dirá pilotar drone. Do mesmo modo que eles assumiram que fizeram o paredão do BOPE, eram eles que estavam jogando [as bombas]”, afirmou.
Elas também denunciaram que os policiais desligaram suas câmeras corporais logo no início da ação. “Falaram que acabaram as baterias das câmeras, mas oito da manhã já tinha gente morta, já tinha gente torturada. As câmeras só serviram quando um deles foi baleado”, afirmou uma moradora.
Segundo os depoimentos, casas foram destruídas após o fim da operação. “Eles estouraram a casa de uma moradora. Pegaram um bujão de gás e destruíram tudo. Se subirem lá, verão o que é aquilo: cena de guerra”, contou uma delas.
Um vídeo citado pelos moradores ao qual este Diário teve acesso mostra jovens se rendendo sob promessa de que não haveria agressões. “Eles falam ‘sem esculacho’, e logo depois, nas câmeras deles mesmos, aparecem chutando e batendo nos meninos rendidos”, disse uma das mulheres. “Queria que algum policial ou que o governo apresentasse onde [está escrito] que quando está prendendo, tem que meter a mão na cara de uma pessoa, tem que bater nele”.

Outro vídeo mostra uma pessoa morta no chão após levar um tiro na cabeça enquanto uma fila de homens detidos é conduzida para um lugar desconhecido pelos policiais:
O ferimento indica que o tiro foi dado pela parte de trás do crânio, pois as marcas ao redor do olho direito sugerem que a bala saiu pela parte da frente da cabeça. Segundo artigo intitulado Ferimentos por arma de fogo, publicado por Gitto L. e Stoppacher R.:
“Em ferimentos perfurantes por arma de fogo na cabeça, os orifícios de entrada e saída apresentam uma característica típica chamada chanfradura (beveling), que permite distinguir entre entrada e saída.
A chanfradura é um tipo de erosão óssea em forma de cone na direção do trajeto da bala através da abóbada craniana.
Os orifícios de entrada podem ter formato redondo, ovalado ou estrelado e apresentam chanfradura interna (erosão óssea na parte interna da tábua óssea) (J Forensic Sci 1991;36:1592).
Os orifícios de saída são geralmente irregulares e mostram chanfradura externa (erosão óssea na parte externa da tábua óssea).
Fragmentos de osso viajam na direção do trajeto da bala através da abóbada craniana.”
Outros registros em casas e becos mostram a truculência com a qual as polícias trataram os moradores da favela:

A cena mais chocante de todo o ataque, no entanto, é o registro de um homem decapitado pela polícia. Sua cabeça, pendurada entre galhos de uma árvore, nem sequer apresenta ferimentos por tiro. Foi executado a sangue-frio pelos policiais do Rio de Janeiro. Reforçamos o aviso de que as cenas a seguir são extremamente violentas.
No dia seguinte, o mesmo homem foi levado pelos moradores à Praça São Lucas, no Complexo da Penha:
A polícia negou envolvimento no caso, afirmando que os próprios membros do CV teriam sido responsáveis pela decapitação do homem. Uma alegação absurda, principalmente quando se leva em consideração o fato exposto neste artigo de que não houve confronto armado na mata da Vacaria. Uma foto publicada nas redes sociais, inclusive, mostra um dos policiais que participou da operação portando um machete:

Diferente do que diz o governo Cláudio Castro e a imprensa burguesa de conjunto, não foi uma mera operação policial contra um bando de criminosos perigosos e armados, uma guerra contra o chamado “crime organizado”. Os fatos que ocorreram no dia 28 de outubro no Rio de Janeiro configuram uma verdadeira chacina, um crime que ficará consagrado como um dos acontecimentos mais grotescos da história do Brasil.
Nas próximas edições, este Diário publicará outros materiais exclusivos coletados por nossa equipe no Rio de Janeiro.









