Quando a Academia revelou a lista de indicados ao Oscar 2025, no dia 23 de janeiro, a atriz espanhola Karla Sofía Gáscon despontava como uma das principais candidatas à estatueta. Havia um forte respaldo para isso: sua condição de trans em tempos de crescente conservadorismo, sua trajetória consolidada aos 52 anos e o prêmio de melhor atriz conquistado no prestigioso Festival de Cannes. O cenário parecia ideal para sua consagração, e a imprensa internacional rapidamente abraçou sua candidatura como um marco na indústria cinematográfica.
Menos de uma semana depois, o jornal The New York Times a apontava como favorita, exaltando seu papel no filme Emilia Pérez. O jornalista Kyle Buchanan destacou que, sendo a primeira atriz trans indicada ao Oscar, seu prêmio representaria um manifesto contra Trump, que já declarou sua intenção de revogar medidas de proteção a essa parcela da população. A análise do repórter refletia a política predominante nos círculos ditos progressistas de Hollywood: a premiação de Gáscon seria um símbolo de resistência contra o trumpismo e um reforço dos valores promovidos pela indústria cinematográfica norte-americana, umbilicalmente ligada ao imperialismo.
O tom do artigo era grandioso: a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (responsável pela premiação), já simpática ao filme, poderia consagrá-lo junto com sua protagonista. A premissa implícita era clara: uma atriz trans simbolizava oposição direta a Trump, e a tendência política da Academia selaria seu triunfo. O próprio histórico recente da premiação reforçava essa expectativa, com sucessivas vitórias de produções alinhadas com o identitarismo. Bastava apenas que nada estranho acontecesse, mas foi exatamente o que acabou ocorrendo.
Apenas um dia depois da matéria do The New York Times, a jornalista canadense Sarah Hagi desmontou a imagem progressista da atriz. Sem vínculo fixo com grandes jornais, Hagi colabora com sítios como Vulture e Taste Cooking, além do britânico The Guardian e no meio de suas férias, decidiu investigar o histórico da atriz nas redes sociais. O que encontrou transformou a favorita da propaganda imperialista no último alvo dos famigerados “cancelamentos” dos identitários.
O primeiro sinal de alerta surgiu ao encontrar o termo “islamista” em postagens antigas. Para Hagi, que tem origem em uma família negra muçulmana de ascendência somali, a palavra carrega conotação negativa, frequentemente associada a extremistas, ao passo que “muçulmano” seria mais neutro. Esse detalhe foi suficiente para levantar suspeitas sobre a incompatibilidade de Gáscon como garota-propaganda perfeita da Academia, mas o pior ainda estava por vir.
Em um dos tuítes resgatados, Gáscon se referia ao negro norte-americano George Floyd, barbaramente assassinado por um policial em 2020, como “um viciado em drogas e vigarista”. Ela reconhecia a brutalidade da abordagem policial, mas apontava que tanto a visão de que negros são tratados como “macacos sem direitos” quanto a de que policiais são todos assassinos estavam erradas. Essas declarações foram o suficiente para que a atriz fosse imediatamente “cancelada” sob o rótulo de racista, destruindo sua reputação entre os mesmos setores que a haviam exaltado dias antes.
Para muitos que viam a atriz trans espanhola como uma propaganda perfeita para representatividade, suas declarações eram imperdoáveis. O tribunal da internet não precisou de mais do que algumas capturas de tela para transformar a favorita dos identitários em pária.
A resposta de Gáscon seguiu o roteiro clássico dos cancelamentos: pedidos de desculpas e exclusão das postagens problemáticas, porém já era tarde, a campanha histérica tipicamente identitária já estava em curso. Em poucos dias, a Netflix apagou sua imagem dos materiais promocionais do Oscar, sinalizando que sua presença na campanha já não era bem-vinda.
O diretor do filme, Jacques Audiard, foi ainda mais enfático. Classificou as declarações da atriz como “indesculpáveis”, disse sentir-se traído e cortou qualquer contato com ela. “Não falei com ela e não quero falar”, disparou.
O golpe final veio da editora espanhola Dos Bigotes, que cancelou o relançamento de um livro publicado por Gáscon no México em 2018. Se antes a atriz era celebrada como símbolo de inclusão, agora era descartada como um estorvo. A engrenagem da cultura do cancelamento, que tantas vezes impulsionou carreiras baseadas em identidades, agora triturava um de seus mais tradicionais setores.
A atriz brasileira que concorre ao Oscar Fernanda Torres, teve também um momento atualmente controverso resgatado: uma caracterização com o rosto pintado de preto conhecido pelo nome em inglês para “rosto negro”, tido como “racista” pelos indentitários, em um programa feito em 2008, para um quadro do Fantástico. Sua resposta, no entanto, foi recebida de forma muito mais branda. Já Gáscon, cujo cancelamento veio da própria militância que a consagrou, não teve a mesma sorte.
Com isso, o que começou como um golpe para impulsionar uma atriz trans ao Oscar acabou virando uma demonstração de como a política do cancelamento pode se voltar contra seus próprios expoentes. Gáscon viu sua carreira ser esmagada pelo mesmo jogo que a fez brilhar. No final, a “representatividade” que tanto exaltam provou ser descartável quando não serve mais aos interesses de quem a promove.