Já lá se vai mês e meio desde que “Ainda estou aqui” (2024), de Walter Salles, venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional, embora não tenha podido dedicar algumas linhas analisando e refletindo o filme, já que, quando fui ao cinema vê-lo, era ainda dezembro e o Literatura e Jornalismo ainda era uma ideia que seria executada pela Plant Criações em janeiro e fevereiro, entrando no ar logo na semana do Oscar. Pois, aqui dedico algumas linhas ao filme, reassistido na noite de ontem.
Atmosfera brilhante
Super 8 da filha nos brinda com maravilhosas cenas vintage do Rio de Janeiro
Para não me repetir em relação a outros tantos resenhistas, gostaria de circular o tema “ditadura” e demarcar alguns filmes interessantes, como “O que é isso companheiro?” (1997), “Batismo de sangue” (2006), “Zuzu Angel” (2006), “Marighella” (2019) e os argentinos “A história oficial” e “O segredo de seus olhos”, todos que ousaram levar este assunto para um foro de discussão mundial como os festivais de cinema, mas os brasileiros não avançando devido a questões políticas e falhas deles próprios.
E o primeiro tema a se levantar é a atmosfera. Se o filme de 1997 enfrentou dificuldades técnicas e financeiras do período, tendo se limitado ao storytelling, os demais já dispunham de mais recursos tecnológicos e “Marighella”, inclusive, nem era um filme de baixo orçamento. Por isso mesmo ele conseguiu atrair o espectador mais para os anos 1960, por meio de reprodução de época, paleta de cores, uso do som e trilha sonora.
“Ainda estou aqui” brilha nesse aspecto, sendo este talvez o segundo de seus trunfos para ter se tornado o filme internacional que os demais não foram. O desafio de dar visibilidade aos males do regime militar, claro, deveria transportar o espectador para o regime militar, plenamente, o que se faz neste filme. As seções de interrogatório de Eunice Paiva (Fernanda Torres), na escuridão interrompida apenas pela luz da mesa, cigarro do inquisidor ao canto, páginas com fotos passando nas mãos de uma mulher perdida pelo sequestro seu, de sua filha e de seu marido, é angustiante a ponto de qualquer pessoa, nascida ou não no Brasil, entender essa gravidade.
Roteiro em duas fases
Alegria inicial (fotos 1 e 2) se desfaz na partida do pai (foto 3), que convida o espectador à obscuridade da ditadura, como na cena do set dirigido por Salles (foto 4)
O roteiro de “Ainda estou aqui” acerta em trazer a complicação do filme bem mais à frente que de costume. Temos uma primeira fase de mais de meia-hora, levíssima, apenas para que desfrutemos os prazeres de uma família rica, vivendo na orla da Zona Sul do Rio de Janeiro, até o sequestro de Rubens Paiva. Ali temos contato com a riqueza cultural do período, por meio das músicas nacionais de sucesso na época, com Caetano Velloso, Gilberto Gil, Erasmo Carlos. Temos um pouco de cinema novo, indiretamente, com o sonho de Veroca (Valentina Herzsage) de ser cineasta e filmar tudo com sua Super-8.
Em “Zuzu Angel” e “Batismo de Sangue”, o início em paz não tarda dez minutos, curvando abruptamente para uma história de ação, na pior acepção do termo: os vilões, militares, prendendo e torturando Stewart Angel (Daniel de Oliveira) em “Zuzu Angel”, Frei Tito (Caio Blat) entre outros em “Batismo de sangue”. Já em “O que é isso companheiro?” e “Mariguella”, nem isso, e já entramos em ação com o planejamento e execução das ações paramilitares por Fernando Gabeira (Pedro Cardoso), naquele primeiro, e Carlos Marighella (Seu Jorge) nesse último.
O uso de um terço do filme para avançar na intimidade das personagens que serão mutiladas, recurso usado por Walter Salles e não por seus antecessores no tema – na ordem do parágrafo, Sérgio Rezende, Helvécio Ratton, Bruno Barreto e Wagner Moura – permite ao espectador ser violado pelo problema dos abusos pelo regime militar, evocando o quanto as famílias e o Brasil foram vítimas daquele desgoverno.
Fernanda Torres e Selton Mello
Fernanda Torres em “Eu sei que vou te amar”, com Selton Mello em “O que é isso companheiro”, e Selton Mello em “O cheiro do ralo”
Esse é meio clichê, já que sempre dirão que a atuação magnífica de Fernanda Torres foi peça importante na vitória do Oscar. E foi, assim como Selton. Pela primeira vez, um filme reuniu duas figuras gigantes do cinema nacional, Torres, inclusive, que estivera no elenco de “O que é isso companheiro” como Maria Augusta Carneiro Ribeiro, uma das sequestradoras do grupo de Gabeira, responsável por tomar cativo o embaixador dos Estados Unidos Charles Burke Elbrick, como arma contra o regime militar.
Daniel de Oliveira é um grande ator, Caio Blat, idem, mas o momento histórico possibilitou que Selton Mello, que é talvez o maior operário do cinema nacional desde “O Auto da Compadecida” (2000), passando por “Lisbela e o prisioneiro” (2003), “O cheiro do ralo” (2006), “O palhaço” (2011) entre outros, fosse coadjuvante do gigantismo de Fernanda nesse filme.
A atriz, que estivera em papéis marcantes do cinema como Maria Augusta e como a vitória de Melhor Atriz no Prêmio do Juri em Cannes, interpretando uma mulher anônima no divã por problemas amorosos em “Eu sei que vou te amar” (1986), de Arnaldo Jabbor, cresceu no momento certo em “Ainda estou aqui”. Suas interpretações na cena da sorveteria, já meme por aí, e na morte do cãozinho Pimpão, quando é tomada pela ira contra os P2 que estão vigiando de carro a sua casa, estão na iconografia do cinema, tal qual a cena do adeus no trem em “O segredo de seus olhos”, interpretada por Ricardo Darín como Benjamín Esposito.
Saber ocupar espaços
Ditadura argentina: “A história oficial” inaugurou o tema, “O segredo de seus olhos” inovou
A quebra do filme em dois momentos é o que possibilita tudo. O momento de alegria, com grande atuação de Selton Mello, até superior naquele momento a Fernanda Torres, a queda no abismo, em que Torres se agiganta desde as noites maldormidas na prisão. Além de outros filmes nacionais sobre ditadura e tortura, o primeiro filme latinoamericano a vencer o Oscar de (então) Melhor Filme Estrangeiro foi “A história oficial”, de Luis Puenzo, este um filme mais direto e documental sobre o tema, em que Alícia (Norma Aleandro) descobre que a filha tem origem em órfãos de casais executados pela ditadura, indo em busca da verdadeira avó, descobrindo em sua trajetória o movimento das Mães da Praça de Maio
À medida que um espaço vai sendo ocupado, outros precisam ser abertos e preenchidos. “Ainda estou aqui”, como um filme de contraste, é um filme que conta essa história pelo lado da perda, mais que da morte (“Batismo de sangue”, Zuzu Angel”), das ações militares (“O que é isso companheiro”, “Marighella”) ou dos movimentos sociais por reparação (“A história oficial”). O lugar da perda nos regimes militares, embora tangenciado por Zuzu Angel, não é explorado suficientemente pelo filme de 2006, já que ele cai mais na luta social, por meio dos desfiles de moda da estilista (Patrícia Pillar) cujo filho foi morto.
“Ainda estou aqui” foi espetacular nisso: contar uma nova história. Assim como, quatorze anos atrás, “O segredo de seus olhos”, de Juan José Campanella, venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional com uma história policial, com ares noir, que tem como tema o acobertamento de crimes bárbaros, em razão dos criminosos serem assimilados para o trabalho na repressão brutal exercida pela ditadura argentina. Num caso ou no outro, uma nova história contada, algo raro no cinema atual, talvez por não serem de hollywood.