Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

A Religião de Fernando Haddad

Verificamos na prática como esse culto persiste nas ladainhas televisivas que consumimos e nas frases feitas dos políticos que elegemos

Credo

  • Creio no Capital que governa a matéria e o espírito;
  • Creio no Lucro, seu filho tão legítimo, e no Crédito, o Espírito Santo, que dele procede e é adorado.
  • Creio no Ouro e na Prata, que, torturados na Casa da Moeda, fundidos e batidos na máquina de cunhagem, renascem no mundo como Moeda corrente e que, muito pesados, depois de circular pela Terra inteira, descem aos porões da Banca para ressuscitar como Papel-moeda;
  • Creio na Renda a 15%, e também na de 16% e na de 20%, e na autêntica Bolsa de Valores;
  • Creio no Grande Livro da Dívida Pública, que garante o Capital contra os riscos do comércio, da indústria, da especulação financeira e da usura;
  • Creio na Propriedade Individual, fruto do trabalho dos outros, que isso dure até o final dos séculos;
  • Creio na Eternidade do Assalariamento, que livra o trabalhador do fardo da propriedade;
  • Creio no Prolongamento da jornada de trabalho e na Redução dos salários, e também na Falsificação dos produtos;
  • Creio no dogma sagrado: Comprar barato e Vender caro;
  • E, ao mesmo tempo, creio nos princípios de nossa santíssima igreja, a Economia Política oficial.

Amém.

Não nos surpreenderia saber que a prece acima, elaborada na forma dos credos mais elevados das religiões cristãs mais sagradas, é entoada à exaustão pelo nosso atual e devotadíssimo Ministro da Fazenda a cada noite antes de dormir, para que possa continuar, no dia seguinte, seu sacrossanto trabalho, sua profissão de fé, de dirigir os rumos da santa igreja da Economia Política oficial nacional.

Nosso santo Ministro é um fervoroso devoto do Capitalismo em seu atual e derradeiro estágio putrefato, carniça que se arrasta, Nosferatu. Ajoelha-se diante do deus Capital e santifica seus parasitas com a fé mais ardorosa e heroica que um homem de bem, um intelectual de esquerda, um professor da USP, pode ter em sua missão divina de adorar o cheiro de podre. O Grande Livro da Dívida Pública e a Bolsa de Valores são nossas testemunhas. Ele é um herói perfeito a ser lembrado nas páginas da história do Brasil por esta crença inabalável.

Essa prece traduz com perfeição seu segredo místico, que visa à putrefação da alma e à descensão aos infernos dos servos neoliberais, cheios de livros contábeis ou, mais precisamente, de planilhas de Excel analisadas por modelos de inteligência artificial. Essa prece é a perfeita tradução de sua religião.

Mas, alguém poderia perguntar, em êxtase místico: em qual livro sagrado está esta linda oração? Há outras de igual natureza? Como posso, devotamente, me converter a essa única verdade sobre a vida?

A resposta está na bíblia intitulada A Religião do Capital, de Paul Lafargue, genro de Karl Marx, que a escreveu em 1887. Trata-se, como fica claro pelo tom da citação, de uma crítica ao capitalismo e aos capitalistas de seu tempo e, ao mesmo tempo, de um exemplar maravilhoso de como aplicar o método científico do materialismo histórico e dialético para expor as contradições inquestionáveis do sistema econômico que nos esfola. Apenas deixe que os donos dos cemitérios articulem seus pensamentos.

Ao escolher o ponto de vista da burguesia de seu tempo — industriais, políticos, banqueiros e demais integrantes da classe dos abastados —, ele revela a lógica absurda de um sistema econômico que ainda é defendido da maneira mais violenta que se possa encontrar. E também da maneira mais cínica. A comparação entre o capitalismo e a religião, com seus dogmas, rituais, orações e sacerdotes, é uma forma de expor a irracionalidade do sistema, que se baseia totalmente na perversão de todas as formas de sociabilidade com o objetivo único de acumulação sem fim.

Infelizmente, nosso burocrata santo Fernando Haddad, como administrador-mor dessa irracionalidade chamada política econômica do governo brasileiro atualmente, converteu-se a esse Credo, descrito há mais de 100 anos por Lafargue, demonstrando que o texto continua atualíssimo. Haddad respeita o Capitalismo – a Dívida Pública, o Dólar, os Juros e a Bolsa de Volores – com mais reverência do que um sacerdote veste sua batina em dia de missa. Ao menos Paulo Guedes, de quem é irmão, não se escondia na sacristia, nem vestia roupa de santo.

O livro é uma coletânea de textos curtos e provocativos, publicados originalmente em jornais e revistas socialistas, como Le Socialiste. O tom, claro, é o da paródia. Temos o “Catecismo dos Trabalhadores”, “Eclesiastes ou o Livro do Capitalismo”, “Preces Capitalistas” (de onde tirei o Credo de Haddad), “Lamentações de Jó Rothschild (capitalista)” e o “Sermão da Cortesã”, um texto lucidamente feminista.

A linguagem é acessível, mesmo para quem não está familiarizado com os conceitos da crítica marxista, que ajuda a esclarecer. O objetivo é mostrar o capitalismo como uma aberração que subverte a lógica natural, impondo uma vida desumana em nome da acumulação e do poder.

Paul Lafargue (1842-1911), nascido em Cuba e de família francesa, foi médico, jornalista, teórico e revolucionário. Dedicou sua vida à luta contra o capitalismo e à defesa dos direitos dos trabalhadores. Além de A Religião do Capital, escreveu outras obras, como O Direito à Preguiça, em que critica a exploração do trabalho.

Em 1921, o teórico alemão Walter Benjamin escreveu um texto muito contundente que faz essa aproximação entre o capitalismo e o cristianismo. Trata-se de um apanhado de ideias que certamente comporiam algo mais estruturado se Benjamin não tivesse cometido suicídio durante a Segunda Guerra Mundial. O texto, intitulado O Capitalismo como Religião, foi publicado postumamente e complementa a ideia de Lafargue ao comparar o capitalismo a uma forma de culto.

A pensadora marxista brasileira Iná Camargo Costa, que Fernando Haddad deve conhecer — afinal, lecionam na mesma faculdade —, explica no prefácio que “não se pode afirmar com certeza que Walter Benjamin tenha lido este livro, mas seu texto ‘Capitalismo como religião’ (…) contém afirmações muito sintonizadas com os argumentos de Marx-Engels-Lafargue. Alguns exemplos: o capitalismo é um culto muito mais extremista do que qualquer outra religião precedente, pois nele todos os dias são sagrados, uma vez que seus devotos devem confirmar diariamente sua crença; é uma religião que não propõe reforma desta vida e sim sua destruição; Nietzsche e Freud integram a miríade de sacerdotes dessa religião; o capitalismo se desenvolveu como parasita do cristianismo, mas acabou engolfando-o a ponto de a história do cristianismo se transformar na história de seu parasita — o capitalismo. Por último: o dinheiro se apropriou de tantos mitos religiosos que acabou se firmando como um mito”.

E aqui estamos. Mais de 100 anos depois da publicação desses textos, verificamos na prática como esse culto persiste nas ladainhas televisivas que consumimos e nas frases feitas dos políticos que elegemos para fazerem justamente o contrário do que fazem. Mas a contradição está exposta. Vivemos momentos que parecem mostrar que a Revolução amadurece a cada dia que passa. Pena que pseudo-intelectuais como Fernando Haddad sejam travas a seu desenvolvimento.

#ForaHaddad

A Religião do Capital foi publicado pela editora marxista e surrealista 100/Cabeças.

PS: Tomei a liberdade de modificar o original dos Credos marcados em negrito para dar um ar mais atual. O original é assim:

  • Creio na Renda a 5 por cento, e também na de quatro e na de três e na autêntica Bolsas de Valores;
  • Creio no Grande Livro da Dívida Pública, que garante o Capital contra os riscos do comércio, da indústria e da usura;

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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