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Coluna

Para além do Direito burguês

"Para entender um jogo, é preciso conhecer as regras. São elas que delimitam mais ou menos a atuação dos jogadores, e informam o que é válido ou não"

Outro dia mesmo eu estava no chat em um dos excelentes programas do canal do PCO no YouTube e um dos companheiros me chamou à atenção: “é inútil discutir a gênese do Direito ainda mais em um chat”. Pergunto à tal esquerda que repete chavões sem raciocinar, qual seria a proposta realista para fundação do Estado proletário que ele diz almejar. E que todos nós revolucionários trabalhamos para realizar.

Nunca foi tão necessário discutir, investigar, refletir, estudar o Direito burguês, sua gênese, sua forma, seus efeitos e, sobretudo, seus eficientes mecanismos de repressão. E também como ele se presta à ascensão fascista. Estamos em franca ascensão autoritária com as bençãos de uma esquerda que relativiza tudo ao mesmo tempo que exalta as arbitrariedades das instituições que compõem o aparelho de repressão do Estado brasileiro. Uma esquerda que brada a favor da democracia juntamente com aqueles que subverteram o Direito burguês ao mais puro solipsismo para encarcerar Lula e tomar-lhes boa parte de sua popularidade. 

A primeira relevante questão que proponho ao leitor nesta coluna é esclarecer que não estamos em um Estado Democrático de Direito. Nunca estivemos. A forma como ele foi concebido pelos democratas em 88 ficou no papel e as partes dessa superestrutura que disciplinavam um Estado Social Democrático de Direito logo foram suprimidas nas primeiras reformas constitucionais. É puro idealismo afirmar que aquelas normas constitucionais refletiam o sentimento democrático e republicano do povo brasileiro, bem como a solidariedade social e, que, a partir de sua promulgação, o Brasil se livraria da pecha autoritária para construção de uma social-democracia ou coisa que o valha.

O que se seguiu foram governos autoritários, apoiados por uma elite anti-nacional mais autoritária ainda. O Estado Social Democrático de Direito proclamado pelos manuais de Direito Constitucional nunca contaminou nem sequer inspirou a práxis politica, mas estabeleceu algumas poucas liturgias que permitiram vilipendiar até morte do Estado de Direito e a ascensão do fascismo.

A conivência dos cretinos

Claro que não é possível enumerar todas as concausas nem nomear culpados ou colaboradores, mas como jurista, procuro dar luz a alguns mecanismos legais e institucionais por meio dos quais o fascismo surfa. Minha intenção é provocar uma reflexão crítica.

Como superestrutura, o Direito burguês se assenta em um ideal de justiça e de igualdade substancial (como se fosse possível tornar a complexidade da vida e das relações sociais algo justo e equânime). Assim, filosofando, o Direito burguês busca legitimar a sua revolução para satisfazer sua sanha capitalista, domar os corações dos incautos e reprimir os corajosos que se levantem contra o sistema. Por meio de uma metódica calcada na teoria da argumentação, o Direito burguês cria mecanismos, conceitos e institutos baseados apenas em conceitos abstratos e suposições mais abstratas ainda. E lá se vão mais de 200 anos de lutas sociais e de reivindicações por justiça e igualdade, o que, por óbvio, modificou as normas jurídicas e seus mecanismos. Sua base filosófica, entretanto, permanece a mesma. 

No Brasil, importamos uma tradição romano-germânica e, ao mesmo tempo, um ideal político liberal que favorecesse a aristocracia nacional. Com o passar do tempo, o Direito burguês deixou de ser coisa de “gente culta” e passou a ser ensinado nas infinitas universidades e faculdades brasileiras, alcançando um número que ultrapassou as classes mais altas até chegar às camadas mais populares. Mas a dominação burguesa é nefasta. 

Eu estou fazendo um resumo tão resumido quanto posso nesta coluna, com intuito de destacar o fato de que o Direito burguês foi simplificado, mastigado, subvertido, amordaçado e vilipendiado para se tornar algo irreconhecível para um jurista sério. Isso mesmo, e isso se repetiu tantas vezes e se multiplicou tanto nas faculdades e universidades que se tornou algo teratológico, cujo conteúdo é preenchido ao sabor de qualquer analfabeto funcional que sabe decorar verbetes de jurisprudência e artigos de lei e, assim, acaba ganhando um assento nos Tribunais, no Ministério Público ou na Defensoria Pública. Tem tanta gente completamente alheia ao Direito burguês e ao sentido de suas instituições que nem dá para contar. Nesse contexto, lawfare e solipsismo judicial são a prática diária. É algo tão esquizofrênico o que vivemos no Brasil que é muito difícil resumir em poucas palavras. É bom que se diga que há um relevante grupo de juristas que conhecem o Direito e sua tradição romano-germânica e que reivindicam sua racionalidade. No entanto, esses poucos só conseguem outros poucos em poucos círculos de juristas e afins. 

Não se trata de subverter o sentido para atingir um determinado objetivo, trata-se, na verdade, de uma grande lambança. Uma lambança tão monstruosa que não seria possível explicar o tamanho do buraco em que estamos enfiados.

Mas se o Direito burguês é apenas um instrumento de dominação, porque seria tão ruim torná-lo um arremedo qualquer? Explico. Ou pelo menos tento explicar.

A dogmática jurídica

O Direito burguês foi concebido com base em especulações filosóficas, no entanto, essa superestrutura foi sendo modificada ao longo do tempo em decorrência dos efeitos das lutas politicas e sociais. Embora a metódica seja baseada em teoria da argumentação, o sistema bastante rígido cria um estrutura para um Estado de bem-estar social bastante estável, como na Alemanha, não fosse pelo imperialismo.

O Brasil nem chegou a consolidar um Estado de Direito, sofremos inúmeros golpes e intermináveis períodos de repressão popular. Embora tenhamos incorporado os chamados direitos fundamentais de segunda e terceira dimensões, as desigualdades aqui são tão estúpidas que nem sequer chegamos perto de um Estado Democrático de Direito. Além disso, ficamos copiando e colando mecanismos e conceitos jurídicos cujos sentidos não são convenientes as elites. Há um sem número de faculdades de Direito onde a técnica, o método e a dogmática do Direito burguês não são observadas. Ao invés disso, são produzidos manuais e fabricados conceitos simplificados, mastigados, resumidos, facilitados. Há uma verdadeira indústria voltada para concurso público, os quais também não qualificam ninguém. O Direito burguês brasileiro se tornou algo ininteligível, um instrumento cretino para cretinos atuarem conforme seus próprios interesses.

O caldo grosso do fascismo

Em um arremedo de Estado Democrático de Direito, o fascismo se agiganta facilmente, e com o apoio de boa parte da esquerda. Os gritos de quem conhece a dogmática jurídica e procura alertar para o fascismo (mesmo que sob a ótica burguesa) não são ouvidos, mas sim silenciados por um ciclo de formação jurídica resumida, mastigada, defasada, subvertida a lógica de um mercado do Exame de Ordem. Os ocupantes da máquina burocrática de repressão estatal continuam impondo sua dominação nefasta, e se põem a serviço de interesses igualmente nefastos. As associações e também os advogados se submetem a qualquer coisa para sobreviver no caos. Juristas pela democracia, juristas de esquerda, juristas vermelhos bradam apoio a institucionalidade repressiva, compactuando com toda sorte de arbitrariedade e, seja por desconhecimento ou má-fé, declaram medidas de repressão teratológicas como se fossem defesas da democracia. Desde o golpe de 2016 (e foi golpe mesmo, ainda que golpe branco, porque golpe branco é golpe), estamos indo ladeira abaixo. O cenário é desesperador: repressão à liberdade de expressão, de manifestação, de associação sem resistência.

A relevância das normas

Para entender um jogo, é preciso conhecer as regras. São elas que delimitam mais ou menos a atuação dos jogadores, e informam o que é válido ou não. Não dá para fazer uma revolução sem tomar consciência da realidade. Sem entender como funciona o Estado burguês, quais são suas regras e os efeitos sobre elas na práxis politica, fica muito difícil enxergar o quanto estamos reprimidos. 

Um partido revolucionário conhece as regras do jogo e reconhece sua própria ideologia e disciplina partidária. Simples assim. Até chegarmos ao comunismo, precisamos das regras para promover as transformações que fornecem as condições para o socialismo. Marx nos esclareceu o jogo burguês e Lênin nos forneceu meios para concretizar nossos ideais socialistas. As normas não são nossos inimigos, desde que sejamos nós mesmos os seus criadores, operadores e revisores.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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