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Coluna

O sistema da chantagem

A esquerda precisa voltar a pôr a revolução na sua agenda: ninguém deveria precisar viver das migalhas dos chantagistas

Dia desses, depois de um aumento na cotação da moeda americana, motivado, segundo a imprensa burguesa, por alguma fala do presidente Lula, este reagiu dizendo que o povo não come dólar. Não demorou um dia para um colunista de economia do Estadão fazer a crítica à frase, que evocava outra da célebre Maria da Conceição Tavares, “o povo não come PIB”. Segundo o articulista, o povo, sim, come dólar. A explicação beira o simplismo e, pior, o cinismo, e, por isso mesmo, é útil para a reflexão.

O economista neoliberal, do alto de sua sapiência, explicou aos pobres mortais que os produtores de alimentos, no caso de o dólar estar alto, vão preferir exportar a comercializar no mercado interno, a menos que este ajuste seus preços pela cotação do dólar. Sendo assim, se o dólar sobe, sobem também o arroz, o feijão, o milho, o que quer que seja. Como o dólar sobe toda vez que o Lula dá uma declaração contrária aos interesses da burguesia, o angu está feito. Ou bem Lula fica quieto, ou bem sai por aí dizendo coisas que agradem ao sacrossanto “mercado”. Ficamos, portanto, a pensar se o pito passado em Maduro, que a imprensa burguesa combinou de chamar de “ditador da Venezuela”, ajudaria a baixar o dólar. Parece que não.

A tomar como certa a explicação do economista, estamos diante de um caso simples de chantagem. O “mercado” (e sobretudo o Banco Central gerido por um representante do “mercado”) chantageia o presidente para evitar que ele beneficie o povo que o elegeu. Esse é o sistema democrático que a imprensa tanto elogia. O povo vota e elege, mas o governante é chantageado por quem perdeu a eleição, mas detém poder econômico.

Os interesses dos ricos são preservados segundo a lógica da chantagem. Quem não se comove ao ver uma mãe na internet pedindo doações para custear o tratamento do filho de um ano de idade, que nasceu com uma doença rara? Uma caixa do remédio custa R$ 6 milhões. Dificilmente essa mulher vai conseguir juntar esse valor em tempo recorde para evitar a morte da criança.

Os planos de saúde fazem face a esse tipo de despesa apenas sob ação judicial; o SUS, por sua vez, não pode recusar por ser um serviço público. Então, o governo faz uma negociação com o laboratório para tentar reduzir um pouco o preço. No caso em questão, a Novartis está há seis meses recusando a proposta do governo.

O que pouco se discute é o motivo de um medicamento custar tão caro. O fato é que, por ser um remédio destinado a uma doença rara, haverá poucos consumidores para ele, portanto o preço sobe. Diferentemente de uma aspirina, consumida diariamente por milhões de pessoas, um remédio para uma síndrome rara não permite o ganho no volume, logo quem tiver a doença (é sempre uma criança) que arque com o custo do lucro do laboratório. E está tudo certo, porque é a “lógica” do sistema. Pouco importa a vida de uma criança e menos ainda o fato de que a doença não escolhe a vítima pelo bolso.

Falando em saúde, as operadoras de planos, como tem mostrado o noticiário, vêm aproveitando uma brecha na regulação para cancelar os que não dão lucro, ou seja, os planos de saúde de pessoas que ficam doentes e precisam efetivamente usá-los. A pessoa pagou por vários anos sem usar; quando se descobre com uma doença cara, como o câncer, é expulsa do plano sem justificativa.

Diante da grita da população, as operadoras se reuniram com o presidente da Câmara, o tal Arthur Lira, a fim de pautar uma nova lei que as favoreça e as livre dos processos na Justiça. As operadoras querem, entre outras coisas, vender planos de saúde sem direito a internação, que costuma ser o item mais caro na conta. Nesse caso, a internação ficaria por conta do paciente, que, se não tiver como pagar, terá de entrar na fila do SUS ou fazer uma vaquinha na internet… E o Lira está fazendo suas articulações para favorecer esse grupo econômico.

A lógica da chantagem permeia todo o sistema. As próprias redes sociais, conquanto tenham revolucionado a comunicação mundial, surgiram e funcionam como um negócio lucrativo. Sendo organizações privadas, criam seus regulamentos sem precisar consultar os usuários, que devem obedecer aos ditames sob pena de serem suspensos da plataforma.

Como as redes são plataformas de comunicação, sua matéria-prima é a fala, a opinião, a expressão; se as empresas privadas podem controlar o que se diz – diretamente, suspendendo usuários e censurando comentários na moderação, ou indiretamente, pelos algoritmos –, somos também chantageados em nosso direito mais elementar, que é o da livre expressão do pensamento. Quer defender a resistência palestina? Vai ser desmonetizado ou suspenso da rede.

A lógica da chantagem permeia todo esse sistema e parece que ninguém mais se indigna com isso, como se essa fosse uma regra imutável da sociedade. A esquerda precisa voltar a pôr a revolução na sua agenda. Ninguém deveria precisar viver das migalhas dos chantagistas.

 

 

 

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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