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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

O gesto político de Aaron Bushnell à luz de Bertold Brecht

O gesto individual de Aaron não é revolucionário, mas regressivo. Para Bertold Brecht, "infeliz a nação que precisa de heróis"

As horríveis imagens do militar da aeronáutica estadunidense, Aaron Bushnell, ateando fogo a si próprio na frente da embaixada do fictício estado genocida em Washington circulam há dias no twitter. São imagens terríveis que se somam às centenas de imagens do sofrimento das crianças de Gaza. Vivemos de fato tempos muito sombrios.

O gesto de Aaron repercute até agora nos Estados Unidos. Está sendo usado politicamente pelas diferentes forças que se digladiam sobre a responsabilidade estadunidense no genocídio. No geral, a repercussão é de louvor à sua coragem em sacrificar a si mesmo para denunciar a participação de seu próprio país na matança de crianças.

Aparentemente, ele não chegou a esse destino apenas movido por ideias fortes. Ele foi mesmo recrutado para bombardear Gaza, o que deve ter feito, visto que há tropas americanas e de outros países, incluindo soldados de grupos mercenários, atuando ao lado dos colonizadores da Palestina.

Trata-se de um gesto político extremo e assustador. Caitlin Johnstone, uma voz contundente da esquerda americana, postou um texto comovido pelo ato de seu conterrâneo. Ela diz:

Não há nada em nossa sociedade que possa nos preparar para esse tipo de sinceridade. Esse tipo de altruísmo. Esse tipo de pureza de intenção. Isso nos paralisa, como se a estrutura do nosso mundo tivesse sido rasgada. E, de certa forma, isso aconteceu. Na verdade, não estamos vivendo no mesmo mundo em que vivíamos antes de Aaron Bushnell se incendiar às 13h do dia 25 de fevereiro. Foi um ato sincero demais, cometido na cidade menos sincera deste planeta. Isso sacudiu demais as coisas para que todas as peças se encaixassem totalmente no lugar. Eu mesmo mudei permanentemente. Encontro-me reaproximando o genocídio de Gaza com novos olhos, vigor renovado e determinação invencível. Agora escrevo com um tipo diferente de fogo nas entranhas.

Essa é uma reação sincera que se espalhou pelos Estados Unidos. O ato do militar renovou a crença na luta. É louvável.

No entanto, há uma contradição em sua ação que gostaria de explorar nessa segunda parte do meu texto. Se de um lado, a ação de Aaron ajuda a disseminar a verdade sobre seu trabalho de militar em um sistema terrível e a legitimar Gaza, por outro, seu desespero também é sintoma da falta de consciência política revolucionária da sociedade em que viveu.

Não foram poucas as postagens que o qualificaram de “herói”. Esse personagem-tipo dos romances e dos filmes, retirado da tradição aristotélica na Poética, foi esculachado pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht com a seguinte frase: “infeliz a nação que precisa de heróis”.

Os heróis revelam a dependência de uma sociedade a ações individuais de sacrifício, como a de Aaron, ao invés da ação coletiva impulsionada por uma força revolucionária consciente que exige mudanças.

O pobre rapaz se autoimolou por causa da inexistência, no atual momento histórico, de forças coletivas na sociedade estadunidense que possam impulsionar mudanças sociais reais contra a perversidade da classe dominante daquele país. É um sintoma terrível da realidade política. Mas que não surpreende diante das eleições presidenciais que se aproximam.

Em sua dramaturgia, escrita na República de Weimar e durante a II Guerra, Brecht desenvolveu um conceito chamado “gestus”, ou seja, um gesto do ator que tem um significado político claro e que auxilia o caráter didático de suas peças épicas. Elas tinham como foco a classe trabalhadora alemã daquele momento histórico.

Podemos dizer que o gesto de Aaron também é didático. Caitlin e tantos outros se deixaram levar pela emoção, sacrificando o entendimento da situação de maneira concreta.

Em seu filme Kuhle Wampe, de 1932, Brecht faz a representação de uma situação de suicídio de um trabalhador. No caso, um jovem não consegue arrumar emprego. Ainda estamos nos anos da desesperançada crise do capitalismo de 1929. Em casa, seu pai o censura. O pensamento pequeno-burguês dos familiares não admite um vagabundo na família. Para eles, conseguir um emprego é só uma questão de esforço pessoal e de merecimento.

Como resultado, o jovem se desespera, assume a culpa pelo fracasso e se mata. Brecht colocou essa cena em seu filme para discutir a falta de consciência de classe da pequena-burguesia e a escolha individual para resolução dos problemas.

Como o personagem no filme de Brecht, Aaron não encontrou saída para seus dilemas pessoais a não ser o autossacrifício.

A única solução para que isso não aconteça é a organização coletiva dos trabalhadores. Se houvesse partidos, sindicatos ou outras organizações de luta, Aaron poderia neste momento estar em uma delas, planejando ações mais concretas ao pesadelo que estava vivendo.

A única alternativa para a classe trabalhadora é sua libertação da opressão burguesa. Isso só se dará com a revolução, único norte de qualquer organização de esquerda comprometida com a solução real das enormes contradições do capitalismo.

Caso isso não aconteça, e o gesto de Aaron aí sim serve de lição, ficaremos presos na regressão e na necessidade de “mitos” ou “heróis” que venham nos salvar, como é a figura do ex-presidente do Brasil para muitos. Mas, alto lá: como é a figura do atual presidente do Brasil para tantos outros.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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