Uma amiga foi visitar pela primeira vez o Carnaval da Bahia e resolveu comprar um abadá – uniforme especial do Carnaval baiano – que permite a ela brincar dentro do encordoamento que separa os que pagam (bastante) para ficar próximos ao trio elétrico dos “pipocas”, que por nada pagarem seguem a folia do lado de fora. Não saiu barato, mas suas economias do ano anterior foram suficientes para garantir essa extravagância colorida de verde e amarelo.
A festa corria solta e animada até que algo inesperado aconteceu. Quando o trio elétrico se aproximava da Praça Castro Alves, e a banda começava a cantar a música de Caetano em sua homenagem, todos os cordeiros (seguranças que controlam as cordas de separação) foram acionados para conter uma confusão próxima, e com isso muitos “pipocas” invadiram a parte exclusiva da turma do abadá. Como a invasão foi muito abrupta, rapidamente a área reservada se viu pintada de muitas cores, em especial a dos soteropolitanos mais pobres e escuros que se misturaram aos sulistas e aos turistas estrangeiros de pele avermelhada pelo sol da Bahia. A banda torpedeava “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião” enquanto uma súbita democracia de raças, credos e castas tomou conta da rabeira do trio elétrico. Enquanto o povo se divertia na mistura inesperada, a cantora abria o grito, alheia ao que estava acontecendo.
Aos poucos a alegria genuinamente popular que ocorreu com a invasão deu lugar a um crescente desconforto. A entrada do povo na parte restrita às elites começou a desagradar aqueles que se sentiam invadidos. Não que estivessem perdendo algo (já haviam pago mesmo), até porque nada lhes foi retirado. Sequer era espaço o que lhes faltava, pois antes já estava bastante lotado. Não, a inconformidade se dava pela invasão de um espaço que consideravam seu, o qual estava sendo usurpado por aquelas pessoas mais pobres. Não era nenhuma perda objetiva, mas a sensação desagradável e subjetiva de dividir espaço com alguém que não julgavam como iguais. Afinal, tinham pago; portanto, tinham mérito. Tinham direito a um lugar exclusivo.
A nenhum deles ocorreu, no meio da folia, das músicas, dos beijos roubados, da dança frenética e dos goles de cerveja, questionar porque uma festa popular dividia o povo entre os que podem mais e os que podem menos. Muito menos ocorreu a qualquer um dos que vestiam abadá se perguntar as razões e as circunstâncias profundas que lhe permitiram estar do lado de cá da corda. Não, não havia clima para estas perguntas incômodas. A solução encontrada foi uma chamada conjunta de todos que vestiam o abadá verde-amarelo para que os seguranças jogassem todos os penetras para fora. “Voltem para o seu lugar”, gritavam. “Eu tenho o direito de estar aqui, você não”, diziam outros. “Eu paguei, não tenho culpa se você é pobre”.
Em alguns minutos, após a intervenção violenta dos seguranças, a ordem foi restabelecida e mais uma vez só havia abadás verde-amarelos entre as cordas. “Eles que façam um carnaval só para eles”, disse o alemão barrigudo que segurava a mulata pela cintura. “Esse aqui é nosso”, completou. O trio elétrico parado na Praça chacoalhava os vidros das casas antigas de Salvador e fazia as ondas do mar próximo quebrarem no ritmo dos tambores. No centro da praça, impávido e pétreo, Castro Alves recitava em solilóquio alguns versos que surgiram em seu pensamento. Talvez – como saber? – fosse uma lembrança que, sem perceber a razão, lhe ocorreu naquele exato instante de euforia máxima e frenesi apoteótico.