A polêmica em torno da liberdade de expressão continua centralizando as discussões políticas no interior da esquerda. Após uma série de embates com o presidente nacional do Partido da Causa Operária (PCO), Rui Costa Pimenta, o dirigente petista Valter Pomar “reiterou”: “numa sociedade de classes, não existe liberdade ‘irrestrita’.” Embora sem dizerem taxativamente o motivo da acusação de que o Partido seria “linha auxiliar da extrema direita”, ou de direita efetivamente como disseram Alberto Cantalice e Emir Sader em seus perfis no X, ambos indicam que a defesa deste princípio elementar aos marxistas colocam o PCO no campo do bolsonarismo, do qual se deriva a pergunta: eram Marx e Engels militantes do bolsonarismo?
O Partido Social Democrata Alemão tinha o programa de Erfurt, o primeiro programa realmente marxista de um partido político. Esse programa foi escrito por Kautsky, sendo revisto e criticado por ninguém menos que Friedrich Engels. O que diz o programa sobre a problema da liberdade de expressão?
“O partido [Social Democrata Alemão] luta pela liberdade de expressão, reunião e associação, bem como pela liberdade de imprensa, sem distinção de corrente política [grifo nosso].”
Isso é o que diz Engels, segundo então os inovadores revolucionários da esquerda brasileira, um “ultraliberal” e porque não, um “bolsonarista”? Talvez trumpista, mas certamente de extrema direita, segundo os sábios colossos e verdadeiros marxistas, defensores das liberdades democráticas com distinção de corrente política. Ocorre que Engels não era o único “bolsonarista”.
Décadas depois, em 1903, um cidadão russo chamado Vladimir Lênin, principal organizador da Revolução Russa, escreveu o programa do Partido Operário Social-Democrata Russo. O partido, que só teria como contribuição a Revolução Russa e o primeiro governo operário da história, copiou a mesmíssima cláusula do partido social-democrata alemão, inserindo-a no programa do partido russo. Isso porque a defesa da liberdade de expressão era algo tão óbvio, tanto quanto defender o socialismo, que não precisava de grandes explicações, sendo uma coisa de senso comum de esquerda.
Entre os marxistas que não se consideram trotskistas, temos ainda um personagem que também não podemos comparar com socialistas do gabarito de Pomar, Sader e Cantalice, entre outros marxistas brasileiros. Trata-se de Rosa Luxemburgo. Indubitavelmente um dos grandes teóricos marxistas do século XX, Luxemburgo criticou os bolcheviques na Revolução Russa de 1917, pegando exatamente este tema.
“Liberdade”, diz a marxista, “é sempre e apenas liberdade para quem pensa diferente”. Restringir o pensamento do diferente não é liberdade, não é democracia. É uma ditadura, mesmo para os padrões burgueses.
Aqueles que se consideram trotskistas, temos por fim a palavra próprio Trótski, para quem toda restrição da liberdade no capitalismo, não importa a quem se dirija no começo, sempre se voltará contra a classe trabalhadora. O então desterrado dirigente da Revolução Russa defendia à época, não o direito em abstrato de qualquer um indefinido, mas o de todos, incluindo dos stalinistas, denunciados pelo revolucionário ucraniano e responsáveis por uma intensa campanha de perseguição e calúnias. Eis, portanto, cinco grandes arautos do “bolsonarismo” e da extrema direita, tomando-se a sério o que dizem os “marxistas” brasileiros.
Ao invés de simplesmente tentarem ridicularizar o PCO com generalidades, seria interessante que os “marxistas” inimigos da liberdade de expressão demonstrassem o fundamento de suas posições. Engels, por exemplo, não defendeu o direito democrático de maneira genérica, mas colocou a questão no programa do partido. Lênin, Rosa Luxemburgo e Trótski, idem.
Seria enriquecedor para o debate político brasileiro que nossos “marxistas” mostrassem por que a posição do PCO é errada e por que Engels era bolsonarista, e não apenas ele, naturalmente. Que o marxismo, na verdade, é um bolsonarismo e que uma parte fundamental do reacionarismo da direita origina-se da luta das forças da reação contra a censura.
Muita coisa pode ser dita sobre este direito democrático, uma conquista da civilização e resultado das lutas revolucionárias travadas pela esquerda dos séculos passados contra o obscurantismo medieval, menos que ele não seja uma reivindicação histórica dos marxistas. A liberdade de expressão irrestrita é a única forma em que ela é efetivamente um direito democrático e não um privilégio de poucos, razão pela qual sempre foi defendida desta forma pelos seguidores do socialismo científico.
Que os adversários da liberdade de expressão demonstrem o erro dos grandes marxistas do passado ao defendê-la ou, caso fracassem (como certamente acontecerá), tenham a decência de parar de associar a doutrina revolucionária ao obscurantismo que ela existe para combater.