Na última quarta-feira (20), a Câmara dos Deputados aprovou o chamado projeto de lei (PL) das “saidinhas”, nome pejorativo dado pela extrema-direita ao direito às saídas temporárias da população carcerária, implicando em uma desumanização ainda maior da massa negra e pobre que se amontoa no infernal sistema prisional brasileiro. Originário da Câmara – onde foi aprovado em 3 de agosto de 2022 -, o PL foi aprovado no Senado Federal no dia 24 de fevereiro, porém com alterações na redação, obrigando a uma nova apreciação pelos deputados, seguindo agora, para sanção ou veto presidencial.
Até essa última etapa, a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) segue em vigor, permitindo a saída temporária por até sete dias, quatro vezes ao ano, para visita à família ou participação em atividades que ajudem a ressocialização do detento.
Com o PL, a saída temporária é mantida apenas aos detentos em regime semiaberto que utilizem o benefício para participar de cursos profissionalizantes supletivos ou de instrução, do ensino médio ou superior. A proposta anteriormente aprovada na Câmara eliminava completamente o direito, mas após mais de um ano parada no Senado, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) mudou a redação para permitir saídas de presos do semiaberto para estudo e trabalho. Há 10 anos, apenas 10% da população carcerária conseguia estudar, segundo levantamento do órgão oficial da Câmara dos Deputados (“Possibilidade de estudo na prisão é apontada como fator de recuperação“, Rádio Câmara, Idhelene Macedo, 12/5/2014).
“Nesse cenário”, diz o relatório do PL, “o tempo de liberação será o necessário para cumprir as atividades educacionais”. Além disso, o direito será negado ao condenado por crimes hediondos com violência, ou grave ameaça contra a pessoa, assim como “o trabalho externo sem vigilância direta”.
O PL das saídas temporárias estabelece, por fim, um exame criminológico como requisito para a progressão de regime, abrangendo aspectos psicológicos e psiquiátricos, o que deixa totalmente subjetivo se o detento conseguirá fazer uso de seu direito ou não. No Senado, dos oito parlamentares do Partido dos Trabalhadores, apenas Rogério Carvalho (SE) votou contra o PL. Jaques Wagner (BA) absteve-se e Augusta Brito (CE), Beto Faro (PA) e Fabiano Contarato (ES) votaram a favor (Humberto Costa e Teresa Leitão ausentaram-se).
No Palácio do Planalto, ainda não há um consenso sobre a melhor abordagem para Lula. Aliados mais pragmáticos acreditam que o presidente não vetará o PL para evitar mais atritos com o Congresso.
Entre os assessores e aliados ouvidos pelo golpista Uol (“Câmara aprova fim da ‘saidinha’ de presos, em derrota do governo Lula”, Carolina Nogueira, Felipe Pereira, Lucas Borges Teixeira, 20/3/2024), a opinião predominante é que Lula faça vetos parciais, decisão que ainda está em análise. O veto parcial tem sido uma estratégia comum do governo para que os itens vetados sejam revisados individualmente pelo Legislativo, ao contrário do veto total, que poderia ser revogado em uma única votação.
Por outro lado, os ditos “pragmáticos” (eufemismo para oportunistas) argumentam que um veto poderia resultar em mais uma derrota no Congresso para Lula. Entre essas vozes está o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), que afirma que o presidente “não está inclinado a vetar” (idem).
Na Câmara, o líder do governo, José Guimarães (PT-CE), anunciou que o Palácio do Planalto (sede do governo federal) não iria se posicionar, liberando a bancada. O deputado justificou a posição afirmando haver o entendimento, por parte do Executivo, de que se tratava de uma discussão estritamente legislativa, e não de uma discussão de governo.
Líder do governo na Comissão de Segurança Pública, Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ) argumentou que durante as saídas temporárias, 95% dos detentos retornam dentro do prazo e menos de 1% abandonam a pena. “Vai se penalizar 95% das pessoas que cumprem a pena por causa de menos de 1% que não cumprem? Essa ideia está completamente equivocada”, declarou.
“Olha o que o Congresso faz: acaba com a saída temporária. Vai dizer às pessoas presas que bom comportamento não é mais balizador para a progressão de pena e para a saída temporária”, concluiu.
O vice-líder do PT, Merlong Solano (PT-PI), afirmou ter um entendimento similar ao de Vieira, mas que a discussão era sobre aceitar o relatório da Câmara ou o do Senado e que a versão do Senado é menos danosa à ressocialização dos presos, ao preservar a possibilidade de saídas para trabalho ou estudos.
“A nossa federação (PT-PCdoB-PV), entendendo que o Senado tornou menos pior o que essa Casa aprovou, vamos ao tempo em que criticamos a lei, vamos orientar a favor da aprovação das emendas, porque pelo menos elas permitem a saída do prisioneiro para trabalhar e estudar”.
Trata-se de um disparate. O que o Senado fez foi mascarar o caráter profundamente fascista e desumano do PL. As saídas temporárias são um resquício de humanidade que o Estado reservou aos infelizes que caem no sistema carcerário, um alívio ao horror do inferno.
A exigência de um exame criminológico como requisito para uso do direito à progressão de pena, por outro lado, evidencia que o direito fora, na prática, abolido. Isto porque com a forma tomada, caberá a um burocrata decidir se o detento pode ou não ter o direito, o que será feito não com base na lei, mas em toda a subjetividade possível de se atribuir aos caprichos de um cidadão em posição de poder e reconhecida disposição para a corrupção.
Apoiada por toda a direita e celebrada pelos fascistas, a aprovação deste duro ataque à população carcerária demonstrou a incapacidade do governo do PT de conseguir travar qualquer luta dentro das instituições. A esquerda não conseguiu opor nenhuma resistência, sendo derrotada e contentando-se com uma ilusão de consolação, reservada a uma minoria muito pequena da população carcerária, que segue abandonada no que existe de mais próximo ao inferno na Terra.