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Coluna

As raízes do golpe na Bolívia

"No quadro político conturbado da Bolívia e numa séria crise econômica, emerge novamente a figura do 'salvador da pátria'"

No quadro político conturbado da Bolívia e numa séria crise econômica, emerge novamente a figura do “salvador da pátria”, o ex-comandante do Exército Juan José Zúñiga, que tentou um golpe de Estado que logo foi abortado pelas forças do governo e das entidades de movimentos de trabalhadores. A principal liderança da tentativa de golpe contra o presidente da Bolívia, foi preso na capital do país.

O golpista chefe declarou abertamente que pretende mudar o regime, derrubar o governo e fechar o Congresso, além de terminar com a prisão dos principais líderes golpistas de 2019. Aparentemente o golpe serviu principalmente fazer a propaganda da direita em relação à situação atual do país e para fazer a propaganda da necessidade de um golpe militar para conseguir viabilizar a direita no poder. A versão do golpista que fez tudo a mando do próprio Luis Arce, embora meio fantasiosa, é plausível tendo em vista do inegável fortalecimento do presidente em termos de popularidade e apoio internacional. Tendo em vista, no entanto, a recente viagem de Arce à Rússia, em que se encontrou com Putin e celebrou acordos com o país, torna a versão do general golpista um estratagema para dividir ainda mais a esquerda boliviana e levantar suspeitas dos evistas em relação ao presidente.

OS OBJETIVOS DO IMPERIALISMO 

Certamente que esta iniciativa tem algum vínculo com a ação subversiva que vem sendo tomada desde o ano passado pelo governo norte-americano em relação à Bolívia. Em relação aos latino-americanos, Washington segue a mesma linha ano após ano. Os americanos sempre nos dizem imediatamente: queremos tirar isso, isso e isso de você, e não nos importamos com o que você pensa sobre isso. E decidiremos por nós mesmos qual de suas demandas será atendida. Os Estados latino-americanos tem enfrentado esta atitude violenta dos EUA com reações mais ou menos importantes , mas a letalidade da Casa Branca aumentou sempre nestes últimos anos. Sem considerações de ideologia, valores democráticos e direitos humanos. Duro, bruto, cruel. Chamam-lhe pragmatismo cínico, quando na realidade se trata de um roubo banal envolto em palavras de cooperação mutuamente benéfica.

Para o imperialismo, o que realmente interessa é se apropriar dos recursos da Bolívia, em especial o lítio. Outra prioridade dos Estados Unidos em relação à Bolívia é bloquear o acesso potencial a seus rivais, China e Rússia a esses recursos para então levar tudo.

A embaixadora norte-americana é uma das principais figuras encarregadas de levar a cabo os planos e intenções dos Estados Unidos. Ela é Debra Hevia, uma diplomata de carreira com o rosto, como já foi apontado em muitas ocasiões, de uma professora do ensino fundamental. Mas não podemos ser enganados por sua aparência e suas palavras de disposição para respeitar as tradições do povo boliviano. Ela tem o cinismo e o cálculo frio suficientes para tirar impiedosamente dos bolivianos o que é seu por direito por viver em suas terras.

A TRAMÓIA

Washington, por meio de promessas de ajuda econômica, começou a insistir para que La Paz apoiasse a linha de política externa da Casa Branca. O objetivo é pressionar as autoridades oficiais a fazer declarações, medidas ou ações que possam complicar o diálogo da Bolívia com a China e a Rússia. As opções são muitas: o caso de Taiwan, Ucrânia etc., problemas distantes de La Paz, mas cada um deles pode prejudicar seriamente as relações da Bolívia com seus países parceiros. Os bolivianos têm que prestar muita atenção e cuidado para escapar dessas armadilhas.

A MÁFIA

Em jogo está um feito antigo dos americanos: a narcomáfia. Os Estados Unidos trabalham há muito tempo e muito de perto com cartéis de drogas latino-americanos. Tanto tempo e tão de perto que ninguém tem dúvidas sobre a presença nas fileiras dos cartéis mais influentes da América Latina das pessoas que colaboram com a DEA. Em Washington, eles não escondem muito. Através de seus homens na máfia das drogas, os americanos redirecionam o fluxo de cocaína para qualquer lugar, ainda mais longe dos Estados Unidos, e resolvem suas próprias tarefas políticas.

Os exemplos são muitos e recentes. A mudança de rumo se deu, ao que parece, no golpe de Estado do Peru. Até então os Estados Unidos fingiam que nada tiveram a ver com mudanças de regime no continente. No golpe de Estado no Peru, em que acusaram o presidente eleito de tentar dar um golpe, e decretaram sua prisão por 20 anos, os cumprimentos à posse da vice-presidente golpista Dina Boluarte foram dados pelo Secretário do Departamento de Estado Anthony Blinken em pessoa. Além disso, uma tropa de soldados norte-americanos teve autorização de entrar no país logo após a nova ditadura matar cerca de 70 peruanos porque protestaram contra o governo.

Podemos considerar outros exemplos. Basta olhar o que acontece hoje no Haiti em que as quadrilhas de narcotráfico se apossaram do poder. Por outro lado, a narco-rebelião no Equador deu ao presidente pró-EUA Daniel Noboa uma grande oportunidade de consolidar seu poder e aprovar no Parlamento leis altamente controversas que pouco têm a ver com os interesses da população de seu país. Como resultado de suas ações, a narcomáfia foi apenas formalmente derrotada, a lei e a ordem foram restauradas. Mas não houve danos irreparáveis aos próprios traficantes. A estrutura de suas comunidades criminosas, sua influência e suas rendas permaneceram as mesmas. É tudo uma farsa.

Na Bolívia, os americanos dedicaram muito tempo e esforço para estabelecer contatos com a máfia das drogas. Esse é o principal alvo da estação da DEA no Paraguai, que é bastante grande e numerosa. Além disso, por uma estranha coincidência, o marido da embaixadora americana Hevia, é boliviano e um ex-agente da DEA. Não é de estranhar que tenha desenvolvido imediatamente uma atividade bastante séria em La Paz, encontrando-se com seus contatos e velhos conhecidos, a maioria dos quais pertence à sua área de atuação profissional.

De qualquer forma, os EUA não descartam a possibilidade de levar seu político pró-americano ao poder e estão se preparando ativamente para isso. No momento certo, um conflito interno pode ser provocado com a participação de estruturas narcomafiosas da mesma forma que no Haiti ou no Equador. Bem, o que se segue, é tudo óbvio. O caos resultante será usado para afirmar que a Bolívia é um “Estado falido” e justificar a necessidade de controle externo. O golpe de Estado de opereta pode ser apenas o início da grande tragédia.

A OPRESSÃO

A chefe do Comando Sul dos EUA, Laura Richardson, não esconde que o principal objetivo dos Estados Unidos é conquistar o controle dos países do “Triângulo do Lítio”. Para isso, em particular, Assunção e Washington anunciaram planos conjuntos para garantir a segurança da navegação no rio Paraná. Dentro de seu quadro, o contingente militar dos EUA no Paraguai está sendo ativamente aumentado. Com isso, a Casa Branca assume efetivamente o controle da única artéria de transporte que liga a Bolívia ao Oceano Atlântico: a hidrovia Paraguai-Paraná. Na verdade, cortando o acesso da Bolívia ao Atlântico.

É preciso lembrar a existência da “Juventud Cochala”. Seus militantes da região de Santa Cruz já participaram ativamente dos eventos de 2019. Os americanos já estabeleceram os laços com eles, e não é muito difícil trazê-los para a capital mais uma vez, como o último caso mostrou, esses ativistas têm muito folego para agredir a todos, até mesmo a imprensa e diplomatas estrangeiros.

OS PERIGOS DO ATUAL PERÍODO

Não há dúvida de que a Bolívia tem um período difícil pela frente. A vantagem é que os planos dos americanos já são geralmente visíveis e quase não têm dupla interpretação. Com isso em mente, La Paz não deve ser enganada ou cair em ilusões. As lideranças políticas do país terão que definir muito claramente seu projeto político, bem como construir e defender sua própria visão das relações com os Estados Unidos para o futuro. O grande problema, que a grande mídia não se cansa em repetir , não é a “insistência” de Evo Morales em ser presidente outra vez. É justamente o contrário: a insistência de Luis Arce de substituir a liderança popular e anti-imperialista de Evo Morales. Ele faz o que quer a elite corrupta e criminosa boliviana e os chacais da Casa Branca: impedir Morales de reconstruir um governo autenticamente popular na Bolívia.

AS CONTRADIÇÕES DO GOVERNO ARCE

Para alcançar um melhor compreensão do que está acontecendo no campo político da Bolívia, é preciso estabelecer os momentos-chaves do governo Arce, ou seja, entender as características e o significado de suas ações. Para isto devemos capturar os elementos que estão operando e dando conteúdo às decisões políticas que o governo está tomando. O objetivo desta reflexão é compreender como um projeto para dividir o bloco popular na Bolívia está em andamento, um processo que parece irreversível.

A ORIGEM DO PROBLEMA

A construção do MAS nos 14 anos do governo de Evo Morales se deveu à sua liderança inquestionável, com base na forte coesão dos setores do bloco nacional – popular articulando o Estado e as organizações sociais em torno de um projeto político de desenvolvimento e soberania nacional. O golpe de Estado de 2019 atingiu enormemente Morales, que teve que se asilar no México perdendo temporariamente seus vínculos com a sua base social. O golpe conseguiu afetar seriamente a estrutura das hierarquias políticas estabelecidas no MAS, possibilitando que o grupo de Luis Arce vitorioso nas eleições, pudesse se tornar protagonista na vida política do MAS, ficando no centro das decisões políticas que era antes ocupado pelas forças de Evo Morales.

Ocorre que este grupo não possui a experiência de poder nem as raízes populares que Evo Morales possui. Sua participação no governo se deu com base na sua propalada competência tecnocrática, adquirida nas academias dos países imperialistas e parcialmente orientada para respaldar, no plano econômico, o projeto político nacionalista do governo.

Dessa forma, Luis Arce e seu grupo continua a agir de acordo com as diretrizes emanadas dos evistas, levando a cabo medidas com base no modelo econômico implantado nos governos de Evo Morales. Esta será a característica dos dois primeiros anos do governo Arce, que permitiram as condições para altos níveis de coordenação entre seu grupo e Evo, para a tomada de decisões. O auge desse processo se dá em novembro de 2021 com a Marcha de Um Milhão e Meio de Pessoas que veio de Caracollo para La Paz, para se manifestar contra a oligarquia boliviana, uma mobilização liderada por Evo Morales.

O EMPONDERAMENTO DO GRUPO ARCISTA

No segundo ano de gestão, o governo patrocinou a Lei contra os lucros ilegítimos, ou seja, contra a “lavagem de dinheiro” que tentava punir escândalos nas lojas de Santa Cruz de la Sierra que se envolveram em crimes de peculato e emissão de notas fiscais fantasmas. Ocorre que esse é o tradicional reduto da direita golpista que se rebelou contra o governo exigindo a revogação da lei. O governo resistiu, tentando quebrar o movimento, mas logo depois cedeu e a lei foi revogada. O governo conseguiu a captura de Luis Fernando Camacho, líder do movimento, em dezembro de 2022, que fez o governo sentir que tinha se saído bem do conflito, o que não aconteceu de fato. Mas o movimento acabou com grandes conflitos internos e perdeu ímpeto, o que para o grupo Arcista significou a conquista de sua capacidade estratégica, diante do colapso da única oposição visível ao governo.

A partir daí o grupo de Arce se vê como autossuficiente e começa a acreditar que poderia governar sozinho. Começam a acreditar que o obstáculo para sua expansão é a dependência que tinham de Evo Morales , e que devem romper com seu arcabouço ideológico e ações políticas. Dessa forma, todo o governo entra em uma campanha de confronto com Morales, tornando o ex-aliado o seu principal inimigo.

O CONFRONTO

Para iniciar o confronto com Evo Morales, houve um cálculo inicial, de que o grupo de Arce contava com o apoio de organizações sociais do país, além de pressupor que sua política tinha musculatura suficiente para sustentar essa aventura.

Para obter apoio das organizações sociais o governo desenvolve uma estratégia de cooptação violenta, com intervenção em congressos e incentivando seus apoiadores a tomarem todos os espaços. A intervenção policial com uso de gases lacrimogêneos no Congresso do CSUTCB para impedir que grupos que apoiam Evo sejam eleitos como nova política, é apenas um exemplo do curso de ação que assumiu o governo de Arce.

O resultado é que o governo de Arce tem o controle da liderança de algumas organizações do país (CSUTCB, Intercultural e Bartolinas), mas são estruturas sem força real. Assim, o primeiro confronto direto com Evo Morales, o bloqueio de estradas para exigir eleições judiciais, mostrou que as bases dos líderes de Arce não existem e que a estrutura paralela criada por Evo Morales é a que tem mobilização, de tal forma que conseguem derrotar o governo com algumas semanas de lockdown.

Mas o mais preocupante é que, a partir do momento em que o governo Arce começa a priorizar a destruição de Evo Morales, a fragilidade de sua estrutura de governança começa a ser desnudada. O governo entra em um processo de déficit fiscal devido à queda da receita do a exportação de gás. Os poucos recursos que restam são utilizados em aumentar as reservas internacionais para pagamento de dívidas e Importação de hidrocarbonetos. Um processo de desvalorização da moeda local é desencadeado com a escassez do dólar. O que leva à escassez de gasolina e diesel gerando uma grande insatisfação popular. A crise é também politica, com um parlamento rachado em facções que inviabilizam qualquer medida.

Ao priorizar o movimento contra Evo, o governo não conseguiu resolver os problemas prioritários do país em todas as áreas e perdeu a maioria no parlamento apresentando uma estrutura de gestão dividida sem direção ou projeto político. A manipulação do Tribunal Constitucional, que por um lado desqualifica Evo, ao proibir sua reeleição, e por outro devolve os 35.000 hectares de terra a Branko Marinkovic, fortalecendo um dos maiores inimigos de Morales. A família Marinković possui quase 40 milhões de acres de terra e tem participação em um banco local extremamente significativo, o Banco Econômico. Branko, ao longo dos anos, tem sido um adversário ferrenho das políticas de nacionalização e da postura política do governo Morales em relação à distribuição de terras. “A reforma agrária pode levar à guerra civil”, advertiu Marinković. Branko é conhecido como rei da soja e é amigo da família Bolsonaro no Brasil.

O governo desperdiçou sua legitimidade, entrando em um beco sem saída. Buscou a manipulação do órgão eleitoral para proibir a reeleição de Evo e tentou impor um congresso de seus apoiadores para se apropriar da sigla do MAS.

O grupo de Arce decidiu dividir o bloco popular de apoio ao governo e confrontar Evo Morales, o que lhe custou mais caro do que o previsto. Com essa decisão, seu governo ficou enfraquecido e perdeu a governabilidade. A opção feita obrigou-o a entrar em processos de desinstitucionalização da justiça, a economia entrou em crise e a fim de manter artificialmente o apoio dos sectores sociais, a corrupção em todo o aparato estatal está se tornando cada vez mais comum, resultando em um governo fraco e desequilibrado, sem credibilidade.

O processo de destruição das oposições – o efeito do pós-golpe – revelou-se muito eficaz e resultou em uma súbita sensação de redução das ameaças aos membros do MAS. A péssima gestão da pandemia pela direita, aliada à ineficiência, à corrupção e à repressão social, contribuíram para esse enfraquecimento.

O impulso inicial para a recuperação da democracia, o retorno da esquerda ao poder e o colapso das oposições criaram um cenário propício que serviria para encorajar as aspirações de Evo Morales em sua busca por um retorno triunfal à presidência da República.

Os apoiadores de Morales argumentam que a indicação de Arce como candidato havia sido acordada sob a premissa de que ele seria uma figura de transição entre o ciclo político do golpe e o da reinstitucionalização da política. De acordo com essa visão, o fim do processo traria Morales de volta para poder cumprir um novo mandato, já que sua eleição como presidente em 2019 foi considerada “frustrada”. Mas Arce teria desistido desse suposto acordo.

Desde 2022, Morales desenvolveu uma narrativa crítica às tendências “reformistas” no governo de Arce. Então, progressivamente, a disputa ultrapassou o limiar para uma divisão orgânica no Movimento ao Socialismo (MAS) e nas instâncias que o compõem. Arce passou a definir Morales como o “principal opositor” de seu governo. Em novembro de 2023, o Centro de Estudos Geopolíticos Latino-Americanos (Celag) publicou uma pesquisa em que analisava a opinião dos bolivianos sobre diferentes temas. Sobre o “principal problema político no futuro próximo”, 42,8% dos consultados disseram que é o confronto entre Evo Morales e Luis Arce, item que foi seguido por corrupção e tráfico de drogas (21,5%).

A disputa entre os dois líderes é o evento central na política do país e o deslocamento da oposição para uma expressão mínima na dinâmica nacional tem destacado Morales como ator principal. Esse conflito é amplamente explorado pela mídia tradicional, a grande maioria de propriedade de setores conservadores e de direita. É claramente conveniente que, para os intervenientes habituais na divisão, Morales seja agora o principal antagonista.

Essa situação evoluiu negativamente para Morales, pois em 30 de dezembro de 2023, por meio de uma decisão da Suprema Corte boliviana que anulou a reeleição presidencial por tempo indeterminado e restabeleceu a eleição para um máximo de dois mandatos. Isso, por padrão, anula as aspirações de Morales e desqualifica sua candidatura.

A CRISE ECONÔMICA

A economia do país vive um esgotamento de seu modelo de sistema cambial. Embora teoricamente livre e flutuante, caracteriza-se por uma taxa de câmbio artificialmente contida por regulações e intervenções estatais.

Em suma, desde 2015 a Bolívia tem déficits fiscais cobertos pela dívida. Mas também vem esgotando suas reservas internacionais. Outro elemento crucial é que na Bolívia os combustíveis são subsidiados, uma parte deles é importada e paga em moeda estrangeira, enquanto os combustíveis chegam à população sob subsídios em bolivianos (moeda local).

Ao mesmo tempo, o país financiou o déficit emitindo moeda local. Programas sociais, custos durante a pandemia, entre outras despesas correntes do governo, foram parcialmente cobertos durante esses anos pela emissão. Apesar de todas essas condições, o boliviano não foi significativamente desvalorizado, os governos de Morales e Arce evitaram a todo custo permitir esse fato, para o qual drenaram enormes quantidades de moeda estrangeira do sistema cambial.

Em março de 2023, a Bolívia começou a sentir escassez de dólares, o que gerou reações de corrida da população pela retirada de recursos em moeda estrangeira. O governo implementou medidas de flexibilização do fluxo de dólares, decisão que conseguiu mitigar a incerteza.

Em fevereiro deste ano, Arce tomou medidas que, de certa forma, rompem com parte do “pacto social” que Evo Morales havia promovido – com o próprio Arce como ministro – para governar a economia boliviana. Uma das medidas é o fim dos subsídios aos combustíveis e a decretação de uma política de incentivo às exportações, a fim de facilitar a entrada de dólares na economia.

Os alimentos só podem ser exportados na Bolívia quando as autoridades consideram que o abastecimento no mercado interno está garantido, de modo que os exportadores tiveram que obter um certificado de abastecimento antes de vender seus produtos para o exterior. Agora, o governo anunciou que soja, carne, açúcar e outros alimentos ficarão isentos de solicitar esse certificado, o que deve aliviar as dificuldades enfrentadas pelo setor exportador, mas podem significar uma queda de seu consumo pelos trabalhadores bolivianos.

Há mais de quinze anos, o governo introduziu um subsídio para a compra de combustíveis, embora tenha sido alertado de que seu custo era um dos principais motivos para a deterioração das contas públicas. Nos últimos tempos, as importações de combustíveis dispararam, assim como episódios de escassez de oferta, que acentuaram as reclamações, especialmente de grandes produtores de grãos do leste do país. Além disso, Arce iniciou a emissão de títulos em dólares para mitigar a necessidade de moeda estrangeira na economia.

As medidas de Arce beneficiam em toda linha a classe dominante do país razão pela qual Morales o qualifica, acertadamente, de ser “neoliberal” e “de direita”.

A INGERÊNCIA DO JUDICIÁRIO

Outro aspecto da crise econômica boliviana está no nível institucional. Em suma, é provável que o Judiciário esteja adquirindo características de um poder autônomo com o poder de influenciar perigosamente a estabilidade do país, como um órgão colegiado, um “Estado dentro do Estado”, o que replicaria práticas semelhantes no estabelecimento judicial do Peru. Ao fazê-lo, esse poder está alterando correlações políticas e afetando o clima institucional em relação aos outros poderes.

A crise judicial da Bolívia é o nome dado à crise gerada devido à decisão do Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia (TCP) de aprovar, por meio do acórdão 0049/2023, a prorrogação por tempo indeterminado de seu próprio mandato e dos demais tribunais judiciais do país, que deveriam funcionar até 31 de dezembro de 2023.

A convocação de eleições judiciais foi introduzida na Constituição boliviana de 2009 e foi realizada duas vezes, em outubro de 2011 e dezembro de 2017, para as quais são necessários dois terços da Assembleia Legislativa Plurinacional (ALP) para aprovar a lista de candidatos ou a lei que convoca o ato eleitoral. Em 11 de dezembro de 2023, o TC declarou por unanimidade a inconstitucionalidade de um projeto de Lei Transitória sobre Eleições Judiciais que seria tratado pela ALP, o que significava um embate direto entre o Judiciário e o Legislativo.

No início deste ano, Evo Morales se colocou como o organizador do fechamento de estradas que paralisou a Bolívia por duas semanas para impedir um “golpe judicial”. Os bloqueios de estradas realizados durante dias pelos camponeses apoiantes de Morales conseguiram que o Parlamento, depois de chegar a um acordo interpartidário, convocasse as eleições judiciais que estavam bloqueadas desde o ano passado.

Por outro lado, não conseguiram substituir os magistrados de todos os tribunais superiores, cujo prazo expirou em dezembro – mas que foi prorrogado indefinidamente pelo TCC – por outros juízes. Este último ponto é fundamental. Morales aponta vários magistrados que emitiram a decisão que impede sua candidatura.

Enquanto isso, em meio a essa crise, Arce assinou uma lei convocando eleições no Judiciário, mas declarou que o fechamento de estradas era “desnecessário” porque custou à economia boliviana 1 bilhão de dólares, afirmação que serviu para criticar Morales. Além disso, Arce indicou que acionaria “processos” contra os autores dos fechamentos.

CENÁRIOS POLÍTICOS POSSÍVEIS ATÉ 2025

Os dados mais recentes sobre a Bolívia mostram que tanto o Governo Arce como Evo Morales possuem amplo apoio popular.

Sobre a oposição e a capacidade dos seus líderes para derrotar o MAS, a sondagem da CELAG mostra que nenhum líder da oposição ultrapassa os 14% do apoio do povo: quem consegue acumular a maior percentagem é Manfred Reyes Villa com apenas 13,7%, seguido de Carlos Mesa com 10,3%. Chama a atenção que, somando os votos de “novo candidato”, “nenhum” e “não sei/não respondo”, se atinja 51,7% da base oposicionista.

No entanto, como já mostramos em outro artigo, os Estados Unidos estão organizando todo um processo de intervenção nas próximas eleições presidenciais de 2025. A opção dos EUA é unificar a direita boliviana em torno de um candidato com chances de crescer seu apoio na população. Mas isso vem junto com toda uma articulação com grupos de orientação terrorista para possivelmente criar um caos na Bolívia que crie uma situação propicia para um golpe típico militar ou para um fenômeno eleitoral como Milei na Argentina. A tentativa de golpe de junho na Bolívia não se faria se não tivesse apoio da embaixadora e do próprio governo dos Estados Unidos.

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