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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

América L

A musa na multidão

Para incentivar os companheiros a publicarem contos e crônicas, resolvi divulgar minha prosa. Todo conto sempre remete a outras histórias; inspirado no jazz e na música instrumental brasileira, escrevi o conto “América L”, dedicado ao pianista Lelo Nazário e ao baterista Zé Eduardo Nazário, músicos do Grupo Um.

América L

Ele mal acredita quando ela, sem menção de ousar, executou o tema no piano. Em dueto, não lhe restava escolha na peça em que todas as frases do tema, nas palavras do compositor, são literalmente “cantadas” pelos tambores, pratos e bumbo, num diálogo complexo, preciso e bastante elaborado com o piano.

Dia de semana – a última terça-feira do mês, chuvosa e fria –, quem respira lá fora vê o ar virar fumaça branca, garoava na hora da peça, a chuva fina para ouvir melhor se é música, se é ruído branco… palco semelhante aos teatros, a parede-aquário abre-se para o público mergulhado nas sombras, à meia luz os rostos escuros parecem manchas de tinta com sorrisos e relógios de pulso. Metade do cenário é ocupado pelo piano de cauda, a luz esverdeada focada sobre o instrumento revela os três pedais, a banqueta com estofado de couro preto; no outro lado do palco, a bateria é trincheira na frente do castelo, bumbo canhão de choque com muitos tambores e pratos… o piano navio negro e a ilha negra cercada de prata e ouro.

Depois das horas, a última peça seria suave, ele fazia círculos com a mão esquerda, a baqueta escova apoiada na zona inferior de Marte, entre os dedos anular e o médio; na mão direita, divide o ritmo com delicadeza, mantém a vibração nos pratos… quando deu por si, sentava o pau a pontapés, havia trocado de baqueta e de postura diante dos tambores; ela tinha para si montes de oitavas, tocava feito se tivesse dois, quatro, oito braços por cima dos teclados. O improviso vai longe, sem receio de incomodar ouvintes e vizinhança; ela propõe retornos, sugere caminhos, desvia-se em modos, séries variadas… perdida nos cabelos crespos, coroa em sua cabeça, traz o rosto escondido porque tem os cabelos soltos, descomposto o laço nos movimentos da nuca e do pescoço, perdeu os nós enquanto tocava, mesmo nas músicas suaves a violência não dorme; tocava de olhos fechados, pende a cabeça ao encontro das teclas, movimenta alucinadamente os dedos e os braços. A música é tensa, o dueto opera nas zonas dos contrários, seguiam lado a lado, ou cada um no seu caminho.

Tempos atrás, durante as lições de bateria, ele perguntara ao professor o significado do título da composição [B (2) / 10 – 0.75 – K.78] – P (2) – [0 (4) / 8 – 0.75 – K 77]. Não há nada de metafísico nessa representação – ele responde –, nada simbólico, nem matemático, nem eletrônico; não me lembro do que meu irmão quis dizer com esse título… às vezes, B é B de baião, o 2 é o compasso, 10 é outubro.”

Ainda nos tempos de aluno, segundo a explicação do professor, o código seria mero registro… a memória se fixa na cor amarela, permanece ali a capa do álbum “Circle / Paris Concert”; abaixo do título, as letras apenas em contorno negro sobre o fundo amarelo, o quarteto de saxofone, piano, baixo e bateria formado por Anthony Braxton, Chick Corea, David Holland e Barry Altschul. Amante das formas e das estruturas, por isso gostava de Anthony Braxton antes de escutar as composições, todas, em vez de nomes próprios, designadas por letras, figuras geométricas, cores…; guiado pelas imagens, apreciou as “Six Compositions: Quartet” para saxofone, piano (Anthony Davis), baixo (Mark Helias), bateria (Edward Blackwell).

Ela, por sua vez, aplicava as concepções da música dodecafônica e serialista, das músicas eletroacústica e concreta, da música resolvidas no aparato eletrônico, nas estruturas de tema e improviso, nas relações entre o jazz e as outras linguagens, tudo no piano acústico, ensaiava horas em dueto com as fitas magnéticas. Na peça de madeira e metal sobre o piano de cauda, as sete esferas cor de prata fazem as vezes do metrônomo, a quantidade de movimento de uma passa através da outra, só a primeira e a última saem do lugar… além do tema, o percurso estabilizado será sempre o mesmo e será outro, mediado pelo piano e pela pianista; seus dedos são negros, a pianista pintava as unhas de branco para fazer o espelhamento das teclas e tocar, ela e elas, na linha entre a pele e o plástico, definida assim:

A mocinha faz o que quer, muitas vezes somente sabe de si quando volta ao tema no final da peça, abstrai o fluxo, faz o contrário do pretendido, às vezes, erra. Na sala isolada, poderia tocar fortíssimo, bate os pés no chão, berrar, quebrar a tampa do piano para usar as mãos nas cordas da harpa escondida lá dentro; joga pregos, parafusos, toda sorte de entulho aleatoriamente entre as cordas, prepara o piano cuidadosamente, procura pelo silêncio ao deixar soar apenas a fita magnética…

Outra tarde, quando a aula de percussão havia terminado, entre as duas baterias no porão de um dos sobrados da Vila Cândida, na Vila Madalena, escutavam um dos trabalhos do saxofonista Ivo Perelman gravado com o professor; “Soccer land”, composto por oito duetos de saxofone e bateria, tocavam de composições próprias a “Lampião de gás” e “Tristeza do jeca” (Gaslight and Jeca’s sadness), um trabalho tão impressionante quanto o “Interstellar space”, de John Coltrane e Rashied Ali. Em seus projetos, o saxofonista brasileiro pretendia gravar o CD “Girl from Ipanema”, dessa vez distante da bossa-nova e do cool, próxima do free-jazz, a capa seria uma mocinha negra, adolescente, nascida nas favelas do Rio de Janeiro; “A Garota de Ipanema” seria gravada ou por dueto de bateria e saxofone, ou quarteto de saxofone, trompete, baixo e bateria, semelhantemente aos formados por Ornette Coleman.

Havia, na coleção do professor, o trabalho “Fire music”, de Archie Shepp, com Ted Curson (trompete), Joseph Orange (trombone), Marion Brown (saxofone alto), Reggie Johnson (baixo), Joe Chambers (bateria) – na faixa “Malcolm, Malcolm – semper Malcolm”, David Izenzon toca baixo e J. C. Moses, bateria. Uma hora de aula, hora de ir embora, o professor localizou no CD a última música, de 8:18 minutos… no início, apenas o trombone, ninguém reconheceria o tema não fosse o título; as variações e o tema, talas e ragas, todos tocam “A Garota de Ipanema”, Archie Sheep improvisa, acompanhado pelo baixo e pela bateria.

Todo concerto é uma missa… a música não é o amor, a música é muito melhor… o aluno permaneceu aflito durante a execução da peça; quem esperava apenas pelo tema e a sugestão do conjunto, teve de aprender com o professor de percussão, calado, a música toda sem se distrair.

Enquanto isso, certa manhã, ela colocou cinco CDs na gaveta do aparelho de som ordenados pelas datas de gravação, pretende escutar todos com atenção redobrada; eis “Full force”, “Urban bushemen” (esse é duplo), “The third decade, “Thelonious sphere Monk”, cinco trabalhos do “Art ensemble of Chicago”, composta por Lester Bowie (trompete), Joseph Jarman (saxofones), Roscoe Mitchell (saxofones), Malachi Favors Maghostut (baixo), Famoudou Don Moye (bateria e percussão). Em princípio, nenhum piano, precisava disso para pensar na música, todavia, foi desatenta na escolha; acertou o tempo, a banda, preteriu as de Carla Bley e Gill Evans, não prestou, porém, atenção na capa do último CD.

Na conferência dos pássaros, cada um deles tem montes de argumentos, fazer a música fruto do instante… “Full force” começa semelhantemente a “Cumbia & Jazz Fusion”, de Charles Mingus; pássaros, vento nas folhagens, movimentos no mato simulados por percussão e apitos. O tema do baixo vem de dentro da selva, ritmo do baixo acústico tocado com arco; a natureza e a música fazem variações sobre o mesmo tema, surgem os metais, a bateria e as congas, a percussão transforma-se em organização da mata, da Cumbia surge o Jazz, o solo de piano, o batuque retorna nas palavras de Mingus sobre a liberdade… no mesmo percurso, agora sem piano, “Magg Zelma” é a primeira facha de “Full force”.

Na capa do CD de Mingus, ele aparece sentado em seu trono, rodeado pela floresta, apenas o rosto e as mãos são pintados em contornos de luz e sombra; a floresta, o trono, suas roupas são traços finos e avermelhados, quase cor de rosa, preenchidos de branco… o homem é o significado de todas as linguagens. Na capa do “Thelonious sphere Monk”, do “Art ensemble of Chicago”, há seis fotografias: em baixo, Joseph Jarman, Malachi Favors Maghostut e Famoudou Don Moye vestidos em trajes africanos, são orixás com os rostos pintados; em cima, Lester Bowie e Roscoe Mitchell, ambos de paletó e gravata, o primeiro vestido de casaco branco, o segundo, de terno preto, um segura o trompete, outro, o saxofone alto. Os cinco em plano americano; cercado por eles, o sexto homem, na face em close a testa brilha cercada por cabelos trançados, Cecil Taylor, o homem do piano.

Ele, por sua vez, escuta “Come rain or come shine”, tema de Mercer e Arlen, título do álbum de uma das apresentações ao vivo de Dexter Gordon, acompanhado por Kenny Drew ao piano, Nils Pederson ao baixo, Al Heath na bateria… da porta de entrada da casa imensa e florida em Indianópolis, ele acompanhou o professor de percussão até o quintal; a aula, dessa vez, seria nos cômodos detrás, lugar do estúdio montado pelo irmão tecladista.

“Aquele último álbum do nosso grupo foi gravado nesta bateria”, recordou apontando o instrumento branco, apenas um tambor, uma caixa, o bumbo, dois pratos soltos e os pratos do chimbau, nada comparado à artilharia pesada de cascos negros, aro folhado a ouro, seis tambores, a caixa, muitos pratos, dois pedais no bumbo, sua bateria anos depois. “Eu carregava um monte de coisas quando ia tocar… levava rotontons, tambores, bacias, latas de lixo, tampas de panelas… vestia um gorro… um dia joguei tudo aquilo fora. O importante é você ir tocar bem-vestido, assim as pessoas prestarão atenção só na sua música; se você toca bonito, com gestos bonitos, a música fica bonita”.

Foi quando o aluno resolveu solfejar o tema de “But not for me”, de George e Ira Gershwin, é a quarta facha da gravação de Dexter Gordon. O estranhamento irrompe no rosto do professor, quem buscava na memória reconhecer a melodia… “olha aqui… por sorte, eu reconheci o tema, mas se você está cantando isso aí, é porque está ouvindo isso, vai tocar assim, só confusão.”

Certa manhã, quando despertou inspirada, ela transcreveu “Hymn of remembrance”, as nove “Spheres” e “Hymn of release”, de Keith Jarret, diretamente do álbum “Hymns spheres”, para o piano; as peças são os improvisos tocados no órgão barroco de Karl Joseph Riepp, no monastério beneditino de Ottobeuren, em setembro de 1976, na então Alemanha Ocidental. Foi dito a ela que Keith Jarret, quando em concertos de música erudita toca peças de Bach, ensaia sistematicamente; se improvisa, ele permanece alguns dias distante do piano. Fixados os improvisos em suas transcrições, a pianista ensaiava os improvisos sistematicamente; se nos primeiros dias precisava do amparo das partituras espalhadas sobre o piano de cauda, logo decorou as sequências, sem visualizar as linhas, sabia as partes todas num só corpo.

Vestida de amarelo e vermelho, a pianista agita os cabelos, os dedos das mãos são teclas de ébano, os pés descalços nos pedais são feitos de chocolate… parece piano programado para quatro mãos ou para Art Tatum, figura da Índia, quando o dedo escapa, imprevisto… o lance, o limiar entre o rigor e o talento ainda não são causa ou efeito… as notas nascem enredadas, cada centro é o limite de outras notas, seus limites, novas notas no órgão, no piano, outra pianista em outras esferas.

Enfim, em América L, naquela noite chuvosa, propícia para a música, o casal chegou separadamente, em tempos diferentes, na verdade, não se conheciam. Traziam o “Real book”, ela, no estojo das partituras, ele, no estojo das baquetas e das partituras; a dama veste luvas enquanto o cavalheiro aquece os punhos e os dedos no círculo redondo de borracha preta. Uma mocinha negra magrinha, a moça mais bonita da cidade, e um mocinho branco encabulado, quem deixou cair alguma coisa no chão ao serem apresentados… não se esquivou de mirar as canelas e as mãos tão bonitas… concerto para quatro mãos e quatro pernas.

O contrabaixo não vinha… a pianista seguiu ladeira abaixo sossegada, enevoada na chuva e na fumaça do cigarro… o baterista fumou no carro, junto da caixa e da sacola dos pratos, ouvindo Suzanne Vega no rádio… brevemente, estariam sozinhos dividindo o palco. E então, ela pisava nos astros concentrada, mal acredita quando, sem menção de ousar, executou o tema no piano, em dueto, a escolha da peça em que todas as frases do tema são literalmente cantadas pelos tambores, pratos e bumbo, num diálogo complexo, preciso e bastante elaborado com o piano.

“Era coisa dos índios e a tomamos para presidir a vida” … próximos do centro da cidade, perto da praça da Sé, tudo é diferente de quinhentos anos atrás; desfolclorizado, o Brasil dos choros, do samba, das modas de viola e do boi-bumbá seria outro, feito os dois amantes transformados.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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