Entrevista

A sociedade libanesa e o Hesbolá

Confira a primeira parte de uma série de entrevistas sobre a sociedade libanesa

Você está prestes a ler a primeira parte de uma longa entrevista gentilmente concedida pelo médico Assad Frangieh, filho de libaneses e destacado membro da comunidade libanesa no Brasil. Hoje com 62 anos, Frangieh já atuou em várias comitivas como intérprete de ministros e chefes de Estado que vieram a nosso País. Nosso entrevistado também já residiu no país árabe, tendo lá aprendido os principais vernáculos falados pelo povo libanês.

Assad Frangieh também trabalha hoje como consultor em algumas áreas médicas e é parente de Suleiman Frangieh, o candidato cristão que o Hesbolá apoia para a presidência do país. No dia 3 de janeiro, Assad Frangieh realizou a transmissão simultânea para o português do discurso de Hassan Nasralá, líder do Partido de Deus (Hesbolá), principal organização política libanesa e aliada do Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) na luta contra o Estado de “Israel”.

O médico de ascendência libanesa também integra a União Libanesa da Diáspora no Brasil, filiada à União Libanesa Cultural Mundial e ao Ministério das Relações Exteriores e Expatriados do Líbano. Desde 2014, Frangieh também organiza o Grupo de Estudos da Geopolítica do Oriente Médio, que promove diversas discussões sobre política internacional e também sobre a política brasileira. Com frequência, nosso entrevistado também é chamado por organizações internacionais para falar sobre a situação em nosso País. Embora se considere “muito mais simpatizante” ao governo Lula em relação ao governo de Jair Bolsonaro (PL), Frangieh se considera “um analista moderado”, que procura se ater mais aos fatos que “a uma linha política determinada”.

Na primeira parte da entrevista, Frangieh nos conta em detalhes como é a divisão social e política no Líbano. Com uma forma de organização bastante peculiar, o sistema libanês é chamado de “sectário”, uma vez que é repartido entre tendências religiosas distintas. Entender como funciona a sociedade libanesa é fundamental para entender o surgimento do Hesbolá, tema abordado por Assad Frangieh nas partes seguintes da entrevista.

Parte 1

O Líbano foi criado em 1920. A sua constituição é baseada no sectarismo. Então, você tem um Estado com a mesma composição que a europeia, como a francesa. Você tem o presidente, o primeiro-ministro e um parlamento. Isso já existe desde 1924, porém, com os franceses, que eram os colonizadores, os grandes patrocinadores do governo, que também tentaram instalar na Síria. Com a independência do Líbano em 1943, esse sistema permaneceu, mas ele não é um sistema no qual o sectarismo aparece apenas nos postos mais importantes, mas também na distribuição de mais de quatro mil cargos, num país que tinha, na época, algo em torno de 800 mil habitantes. Hoje, o Líbano tem os seus quatro milhões e pouco, mais 1,5 milhão de palestinos e sírios. No país, o sectarismo não é uma definição apenas para os cargos mais importantes.

Aí, vem a segunda parte, que é a divisão social, igual tem aqui, a divisão em classes. Você tem a classe mais rica, a elite, que era composta em grande parte por cristãos maronitas, a elite dos muçulmanos sunitas e uma boa parte de drusos, que são considerados muçulmanos. O Líbano tinha uma grande equipe de elite e na sua história sempre foi divido em duas grandes regiões, uma central, chamada Monte Líbano, e uma no Norte, onde tinha uma boa concentração de cristãos maronitas e drusos. Quando a França criou o grande Líbano, ela anexou territórios da Síria, que fica ao norte do Líbano, como a região conhecida como Vale do Beca, e o sul do Líbano. O sul do Líbano é densamente povoado por xiitas e cristãos. Isto aqui é um fato histórico, desde a época de Maomé, desde o final dos anos 700, quando se criou o movimento islâmico. Então, os xiitas estão fixados no Líbano há muito tempo. E o sul do Líbano, historicamente, não se chamava sul do Líbano, mas Galileia. Então, quando os israelenses falam “a alta Galileia”, estão se referindo às Colinas do Golã. Quando você fala a “Galileia do litoral”, você está se referindo ao sul do Líbano.

O poder político, por sua vez, não é dividido proporcionalmente a partir da demografia dos libaneses. Metade do poder político está nas mãos dos cristãos, principalmente os maronitas, mas demograficamente eles não representam mais que 30% dos libaneses. Por outro lado, os muçulmanos, que representam 70% da população, reunindo sunitas, xiitas e drusos, detêm apenas 50% do poder político. Mas que é efetivamente o poder principal do Líbano? O Banco Central, que está na mão dos maronitas. O comando do Exército, que está na mão dos maronitas. As maiores seguradoras, que estão na mão dos maronitas. O porto de Beirute, que está na mão dos maronitas. O que quer dizer na mão dos maronitas? Quer dizer que o comandante-chefe do porto tem que ser maronita. ‘Ah, mas ele é incompetente’! F***-se: tem que ser maronita. O presidente do parlamento é xiita, o primeiro-ministro é muçulmano sunita.

Nesse contexto, em que os Estados Unidos tentaram colocar a imagem de muçulmanos sunitas contra xiitas, o Líbano sofreu muito, porque todas as monarquias do Golfo Pérsico apoiam sunitas, enquanto que os xiitas eram apoiados pelo Irã. Historicamente, os grandes estudiosos xiitas do Irã vieram do Líbano. Existe, no sul do Líbano, as Colinas do Golã. Lá era uma região que era um refúgio de muitos estudiosos xiitas que eram prosseguidos pelos grandes califados sunitas e toda a base do xiismo nasceu no Líbano, nasceu na Galileia, porque na época não havia o Líbano, e eles acabaram indo para o Iraque e depois para o Irã. É a mesma coisa que um católico dizer que não tem vínculo com o Vaticano, como não? Você reza o que o Vaticano pede. E se você é católico apostólico romano, então você acaba criando um vínculo, mesmo sendo de outra etnia, de outro idioma.

No Líbano, você tem uma população libanesa que se apega culturalmente, socialmente e, às vezes, culturalmente a países maiores, como principalmente a França, a Itália e, depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos. Você tem muçulmanos sunitas que se apegam a países do Golfo Pérsico, como Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes, Cuaite e uma parte da Jordânia. E você tem os xiitas, que se apegam principalmente a governos mais laicos, como o governo da Síria, que não é um governo religioso, e o governo do Irã, que é um governo ideológico. No Iraque, você tinha, na época de Saddam Hussein, um país laico, que não era afiliado aos sunitas, apesar de ele ter feito um belo acordo com os países sunitas para combater a Arábia Saudita. No final, o Iraque perdeu, isto é, hoje, uma parte da população, que é xiita, é pró-Irã, e uma parte é em cima do muro em relação aos americanos. Não só no tocante dos americanos, mas não tem uma independência, então não consegue se separar nem dos Estados Unidos, nem da Arábia Saudita, que é o grande financiador desses grupos.

O Líbano é um mosaico de culturas, de religiões, de linhas ideológicas e políticas. Você pode encontrar no Líbano em torno de 50 partidos políticos, vai desde partidos comunistas a partidos mais afiliados religiosamente. E, de certa maneira, cada partido no Líbano acaba tendo uma religião a seguir. O partido comunista do Líbano não pode lançar um candidato comunista propriamente, mas ele pode lançar um candidato da religião ortodoxa cristã. Ele é candidato pela religião ortodoxa, mas na hora que ele assume, ele diz: ‘sou comunista’. Por quê? Porque o comunismo não é reconhecido como divisão sectária. No Líbano, você tem duas grandes religiões: o Cristianismo e o Islã, divididas em 17 pequenas facções dessas religiões. A única religião que não tem espaço lá dentro é o pentecostal, são os evangélicos. A Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa não aceitam os conceitos pentecostais. Eles aceitam o protestantismo, mas em algumas determinadas religiões, de maneira que o protestante se apresenta como um cristão ortodoxo. Mas as igrejas sionistas não são aceitas de jeito nenhum, muito menos o sistema evangélico.

Agora, voltando para o lado social. Muita gente fala que o Líbano é a Suíça do Oriente Médio. Na verdade, nunca houve uma Suíça do Oriente Médio, porque a burguesia libanesa sempre se concentrava na capital e nas áreas próximas da capital. O Líbano inteiro, principalmente nas regiões mais distantes de Beirute, o sul do Líbano, o Vale do Beca e o norte do Líbano, eles são os pobres, são os trabalhadores, são os oprimidos, independentemente da religião. Então, o norte do Líbano se entende bem como os muçulmanos, que são maioria, porque são pobres. Não havia burguesia no estilo que tem em Beirute. Digo, o cara é dono de um banco, de uma seguradora, tem um monopólio de importação e exportação, entrou em uma indústria de alimentação… Para se ter ideia, a importação e a exportação de remédios para o Líbano é dominada por sete famílias feudais há mais de cem anos, algumas cristãs e algumas muçulmanas.

Somando o sectarismo, em cada setor religioso você tem a divisão de classe. Em algumas, os pobres falam mais alto, em outros os partidos esquerdistas, inclusive partidos comunistas falam mais alto, em outras, os movimentos trabalhistas, inclusive há muitos sindicatos.

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